08 MAR 2020
08 março 2020 às 00h30

Ana Gomes: "Soares dava uma volta no túmulo se Marcelo ultrapassasse os 70% que ele teve"

Ana Gomes volta aos temas que lhe são caros e cada vez mais atuais, nesta entrevista DN/TSF. A corrupção, Isabel dos Santos, Rui Pinto... e outro, que não lhe é muito caro, e a que continua a esquivar-se: a sua candidatura à presidência.

Catarina Carvalho e Anselmo Crespo/TSF

Nesta semana decorreram buscas em clubes de futebol, casas de dirigentes e até de agentes desportivos, numa operação que dava pelo nome de Fora de Jogo. A justiça pode tardar, mas acaba por chegar?
Esperemos que sim, mais vale tarde do que nunca, sem dúvida. Esta operação é induzida pelas autoridades de outros países que fizeram o que havia a fazer quando saíram os Football Leaks. Segundo o comunicado da PGR [Procuradoria-Geral da República] visa os negócios do futebol profissional desde 2015, altura em que saem os Football Leaks. Os outros países fizeram o seu trabalho e o nosso aparentemente não fez, está agora a fazer e por pressão externa. Tanto quanto eu sei, nem sequer foram ainda pedir colaboração ao Rui Pinto, não obstante ele ser a fonte dos Football Leaks, como é do Luanda Leaks, e, não obstante ele ter dito que estava disponível para ajudar as autoridades nessas investigações.

Daquilo que conhece e sabe, isto é só a ponta do icebergue?

Eu não sei em que é que incidem, só sei aquilo que já foi noticiado, e já isso é amplamente preocupante. Mas sim, eu tenho a perceção de que tudo o que tem sido noticiado é apenas a ponta do icebergue porque muita da criminalidade associada aos negócios do futebol não está só nos clubes e nas práticas dos clubes, e dos agentes ligados aos clubes e dos agentes dos treinadores, dos futebolistas, etc. Está também nos negócios que se fazem à pala dos clubes, designadamente pelos dirigentes. Não tenho dúvidas de que haverá muita criminalidade organizada, máfias. Por exemplo, há uma área em que ainda nem se começou a puxar pela ponta e que é a que está ligada às apostas online. Não é por acaso que em Portugal, os jogos da 2.ª divisão, a que ninguém liga propriamente muito - tanto quanto eu sei e não sei nada de futebol - são dos jogos que mais apostas online de todo o mundo concitam. É altamente indiciador de que há aí criminalidade organizada, e a nível global.

Isso são as suas previsões, não são informações que lhe foram dadas pelo Rui Pinto?
Não. São informações que resultam do que apurámos no Parlamento Europeu quando fizemos algumas investigações relacionadas com estes esquemas na Europa. Só puxámos um bocadinho, por exemplo a propósito de Malta, que é um dos centros do jogo online, e nem fizemos essa investigação. Havia tanto mais ainda que investigar, designadamente relacionado com o assassinato da jornalista Daphne Caruana e com todos os negócios sujos implicados, que não chegámos lá, mas eu tive a intuição. Aqui em Portugal, de certeza que essa é uma das áreas que precisam de investigação e, tanto quanto eu vejo, ainda não se começou. Ainda recentemente escrevi uma carta ao ministro das Finanças e ao ministro da Economia, que tem a tutela da inspeção de jogos, sobre o navio Explorer, que foi construído em Viana do Castelo e que pertence, entre outros, ao senhor Mário Ferreira, da Douro Azul, e que tem uma licença de jogos do governo da Madeira e está pelo mundo a servir de casino. Aquele navio foi inaugurado por altas personalidades. Eu fiz a pergunta sobre quem está exatamente a controlar as incidências fiscais neste casino flutuante.

Teve resposta?
Tive a resposta de que estão a apurar. Está a ser apurado, ainda estou à espera da resposta.

Ainda em relação aos clubes de futebol, porque me ocorreu enquanto estava a falar de crime organizado, de máfias, um dado objetivo: nós temos em dois dos maiores clubes de futebol - Benfica e Porto - presidentes que perduram há anos e anos e anos. Acha que é por acaso?
Não, acho que não é por acaso e isso implicaria, de facto, uma investigação aos negócios pessoais ou das empresas a que essas pessoas estão ligadas, ou pessoas dos seus círculos de relações.

Isso tem vindo a acontecer agora. Aconteceu a Luís Filipe Vieira em relação à OPA do Benfica.
Aconteceu? Alguém que faça uma lista das empresas que esse senhor foi deixando juncadas com cadáveres, em insolvência, e quem é que tomou conta dessas insolvências? E que dívidas é que isso implicou aos bancos, dívidas em muitos casos restruturadas, isto é, perdoadas à conta de todos nós cidadãos que contribuímos para limpar os bancos e para os bancos poderem limpar os seus ativos negativos? O que eu vejo são prescrições. Sim, anunciam-se investigações, mas depois há prescrições. O polvo da corrupção que hoje está mais do que demonstrado que está por todo o lado, incluindo até no setor da justiça, e que entre outras coisas servirá exatamente para fingir que se fazem investigações, depois elas ficam pelo caminho porque são morosas, porque há prescrições...

Mas acha que a justiça é conivente com o mundo do futebol, também?

Aquela história da lista dos juízes, com moradas, que o Benfica tinha, são 46 afinal, estive a verificar. Independentemente de eles terem ou não aceitado os convites, essa lista existia. Porque é que o Benfica a tinha? É preciso investigar. Para que servia ter essa lista de juízes que se convidavam para jogos de futebol? Se olharmos para o caso do escândalo na Relação de Lisboa, é evidente que há corrupção. Ao contrário do que querem dizer, não é apenas um problema de viciação na distribuição dos processos. Não é. É de corrupção, é de captura de juízes do Tribunal da Relação de Lisboa para darem, por exemplo, a sentença que foi dada pelo juiz Orlando Nascimento contra os jornalistas do Correio da Manhã e a favor de Rui Rangel - uma sentença que depois foi arrasada no Supremo Tribunal de Justiça. A sentença do tal juiz Rui Gonçalves, agora suspenso (aliás não foi suspenso, está sob investigação na Operação Lex porque deu uma sentença favorecendo o empresário José Veiga na fuga ao fisco). Temos, obviamente, os casos da juíza Galante e do juiz Rangel; a sentença contra Ricardo Sá Fernandes por ter denunciado como corrupto Domingos Névoa, que é dada pelo juiz Rangel e pelo juiz Almeida Cabral, uma sentença que foi arrasada recentemente no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Estão aqui alguns exemplos que nos fazem perguntar o que é que se passará noutras decisões do Tribunal da Relação. Não é só a questão da distribuição dos processos e da violação do princípio do juiz natural. Houve falhas nestas decisões que deixam suspeitas de haver captura nas próprias decisões judiciais. O que se passará noutras relações do país? E prescrições? Ainda nesta semana soubemos que crimes imputados a Vale e Azevedo e a Rendeiro foram objeto de prescrições. Isto não é por acaso. Eu fartei-me de denunciar que a prescrição do processo dos submarinos não era por acaso. Foi organizada. Foi instrumentalizada ao mais alto nível da PGR. Fartei-me de o dizer.

Tem sido uma das maiores defensoras do Rui Pinto, subscreveu a petição a exigir que ele fosse libertado da prisão preventiva em que se encontra atualmente. Ainda assim, admite que ele possa ter cometido, de facto, vários crimes e que tenha de ser julgado por esses crimes?

Não só eu já o disse, como todos os subscritores dessa declaração dizem que não está em causa que o Rui Pinto não seja julgado pelas imputações que o Ministério Público lhe faz de crimes, de acesso ilegal, etc., mas o que está em causa nesta declaração é justamente a excessiva prisão preventiva, ainda por cima quando ela é apenas justificada por um único crime, que é o de tentativa de extorsão.

Mas não há vários casos em Portugal de prisão preventiva excessiva?
Não, não há. A prisão preventiva neste caso é um absurdo. O que mais me preocupa é que esta prisão não serviu para as autoridades irem pedir a colaboração do Rui Pinto, por exemplo, para ir explorar todas as outras informações que sabemos que estão nos mais de dez suportes que não foram desencriptados e que só podem ser desencriptados com a colaboração dele. O objetivo desta prisão é fechar Rui Pinto, silenciar Rui Pinto. Eu quero que ele vá a julgamento. Acho que é uma grande oportunidade para se saber muita coisa que ele sabe, que ele pode fazer que todos saibamos, independentemente das responsabilidades criminais que ele tenha. Não digo que ele, se praticou crimes de acesso ilegal, não tenha de responder. Pelo contrário, o que digo é que ele também fez um extraordinário serviço público ao desvendar toda a criminalidade organizada que vai aí, e que não é só nos campos de futebol como o Luanda Leaks demonstra, é também por exemplo nos advogados que são instrumentais nesses esquemas de criminalidade organizada - fuga ao fisco, branqueamento de capitais, corrupção, etc.

Há uma disputa sobre esse assunto, a polícia diz que Rui Pinto não colabora.
É falso. Rui Pinto e o próprio advogado já disseram repetidamente, já escreveram, que ele estava disponível. Não colabora para se incriminar a si mesmo, porque o procurador do Ministério Público que está a tratar do caso só queria a colaboração dele para que ele se incriminasse a si próprio. Ele disse que colaborava na investigação sobre a grande criminalidade que aí está e em relação à qual não têm estado a fazer nada. Ele fez várias vezes denúncias à PGR e viu que nada era feito. Aqui estou eu, que dou a cara, e também tenho visto várias vezes que as denúncias que eu faço não dão azo a investigação alguma. Portanto, Rui Pinto, a partir de certa altura, quando percebeu que ninguém estava a ligar às denúncias que ele fazia, decidiu pô-las no domínio público, de resto, com a ajuda de jornalistas da Der Spiegel.

Ele diz que quer colaborar em que casos?
Em todos os casos em que se vá atrás da grande criminalidade que ele expôs. Obviamente que a pessoa não vai incriminar-se a si própria, aliás isso é da lei. É natural que quem esteja acusado de crimes não queira enterrar-se mais. A justiça tratará das responsabilidades que Rui Pinto tem por acesso ilegal, etc. Independentemente disso há um serviço público inegável, neste momento em que, inclusivamente, a tecnologia digital é absolutamente instrumentalizada pela grande criminalidade para favorecer os seus objetivos de fuga ao fisco, branqueamento de capitais, corrupção, etc. É quando as autoridades não têm meios. Repare que ainda agora soubemos que no caso de Alcochete, e também no caso da própria Operação Lex, as autoridades não tinham o sistema de desencriptação dos telemóveis que era necessário para os procuradores acederem aos conteúdos dos telemóveis para lerem as comunicações do juiz Rangel, etc. Foi preciso ir pedir apoio. Quando as autoridades não têm esses meios elementares, quando as autoridades deviam estar justamente a aproveitar - como estão as autoridades francesas, belgas, holandesas - o manancial de informação que Rui Pinto lhes faculta, em Portugal não se vê nada disso, pelo contrário.

A polícia diz que ele não fornece os meios para abrir os tais instrumentos informáticos que a polícia tem.
Ele só os fornecerá com a garantia de que as autoridades vão seriamente atrás da criminalidade. Infelizmente ele não tem razões para pensar, até hoje, que em Portugal isso vai acontecer, porque também sabe que há muita corrupção e infiltração dentro do próprio sistema de justiça, incluindo, naturalmente, nas autoridades responsáveis pela investigação. Nós vimos, por exemplo em Espanha, que nem foi preciso pedir a colaboração de Rui Pinto. Com base nas informações que ele divulgou sobre a fuga ao fisco, o fisco espanhol já recuperou milhões de Mourinho, de Ronaldo, de Messi e de outros. Em Portugal, não vimos o fisco fazer nada disso. Está agora a fazê-lo, tardiamente, mas está finalmente a fazê-lo. E porquê? Por instigação das autoridades dos outros países que, essas sim, já estavam em contacto com o Rui Pinto e tinham obtido a sua colaboração. Como as autoridades portuguesas teriam obtido a colaboração se tivessem ido ter com ele, como foram as outras, e lhe tivessem dado garantias de que iriam mesmo atrás da criminalidade. Pelo contrário, o objetivo foi apenas fechá-lo e, mesmo lá dentro, não obstante ele ter dito por escrito, através do seu advogado, que estava disponível, até agora nunca lhe foram pedir que ele colaborasse no desvendar dos casos de corrupção. Ele ainda tem mais informação.

Há outro caso em relação ao Luanda Leaks e a Isabel dos Santos. As vendas que a empresária está a fazer, em Portugal, da participação que tinha no Eurobic e noutras empresas. Nesta semana, o primeiro-ministro voltou a dizer que o governo português não podia fazer nada para garantir que o resultado dessas vendas era salvaguardado. Acontece que o governador do Banco de Portugal também diz que o Banco de Portugal não pode fazer nada. É mesmo assim, afinal ninguém pode fazer nada?

Eu tenho dificuldade em compreender essa posição da parte do primeiro-ministro. É evidente que Portugal, o governo português, tem obrigação de tomar uma posição pública no sentido de dizer: não, não nos passa pela cabeça que as autoridades competentes, que são certamente as autoridades judiciais nesta fase, não atuarão por todos os meios para impedir que o produto dos esquemas criminosos - branqueamento, corrupção, saque organizado aos recursos de Angola, etc. - vão continuar a beneficiar o criminoso ou a criminosa e os seus cúmplices. De resto, há leis, diretivas europeias, designadamente a Diretiva 42/2014, que foi transposta pela Lei 30/2017 e que é exatamente sobre o regime de recuperação de ativos, no sentido de lhe dar mais eficácia. Naturalmente que precisa de ser acionado pelos procuradores e pelas autoridades tributárias portuguesas que têm competências no combate ao branqueamento de capitais. Há um conselho nacional de combate ao branqueamento de capitais, inclusivamente de vários ministérios, e não são só as autoridades tributárias, o Banco de Portugal ou as autoridades judiciais, todos eles têm de intervir. Mas as autoridades judiciais, até porque têm um pedido de arresto por parte das autoridades angolanas - com base nos entendimentos bilaterais com Angola - têm o dever de atuar. Faz sentido que as autoridades governamentais tomem posição política no sentido de respaldar uma intervenção das autoridades judiciais para, por exemplo, travar que se façam transferências que resultem na venda dos ativos do Eurobic ou da Efacec ou da NOS para a senhora Isabel dos Santos, como já foi impedido, por exemplo, transferências daqui para o Dubai ou daqui para a Rússia, para Malta...

Portanto, se este dinheiro desaparecer, para usar uma palavra que hoje está muito em voga, é uma vergonha?
Completamente. É continuar a ajudar a criminalidade. Se isso desaparecer não é por incompetência - eu não acredito que as nossas autoridades sejam incompetentes e sei que há muita gente séria, capaz e competente -, é porque houve cumplicidade. É por isso que me causa muito transtorno ouvir o primeiro-ministro dizer que não pode fazer nada. Quer dizer, o Banco de Portugal quando podia ter intervindo, não o fez. E eu fartei-me de escrever cartas ao governo, a este, às autoridades europeias e ao Banco de Portugal, a avisar sobre o que se estava a passar com os ativos de Isabel dos Santos e as compras aqui. Portanto, eles não podem dizer que não sabiam. Sabiam. Escolheram não fazer nada. Escolheram deixar continuar a correr o marfim. Agora, depois deste escândalo, com Portugal nos olhos do mundo inteiro como uma plataforma de branqueamento de capitais e de encobrimento da corrupção, obviamente que as autoridades portuguesas têm de fazer alguma coisa. O mínimo dos mínimos é dizer que há instrumentos em Portugal para atuar. Porque um aspeto essencial é a recuperação de ativos e, neste caso, a recuperação dos ativos por parte de Angola. Portugal tem de colaborar na recuperação desses ativos por parte do país que foi saqueado.

Como é que olha para a atuação do Banco de Portugal? Que avaliação faz deste mandato de Carlos Costa?
Péssima. No caso Luanda Leaks é já devastadora, mas se olharmos para trás, para o caso BES... Peço imensa desculpa, mas ainda antes da resolução do BES, mal se soube que Ricardo Salgado era uma das pessoas que tinham recorrido ao RERT [Regime Especial de Regularização Tributária], esquema de amnistia fiscal para repatriar capitais e branquear capitais legalmente, fui uma das pessoas que questionaram como é que era possível que aquele homem continuasse a ter a idoneidade reconhecida pelo Banco de Portugal para ser banqueiro. O Banco de Portugal só não agiu mais cedo porque não quis. Há muito tempo que o Banco de Portugal tinha dados para ter intervindo no caso do BES e não o fez. Quando interveio, do meu ponto de vista, fê-lo erradamente. A decisão aí também foi do governo da época - Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque -, no sentido de se prestarem a ser cobaias neste esquema da resolução e, depois, da venda de uma parte substancial dos ativos à Lone Star - que até hoje ninguém sabe quem é que está por trás e é outro esquema de sorver os recursos do Estado Português, dos dinheiros dos contribuintes, dos que pagam impostos, para, mais uma vez, tapar o buraco, e agora o buraco infindável do Novo Banco. Tudo está errado, do meu ponto de vista. Devo dizer que, agora que se fala na possibilidade de o ministro Mário Centeno ir substituir o governador, só espero que o ministro Mário Centeno seja tão bom exatamente naqueles aspetos em que Carlos Costa falhou totalmente, quer na supervisão da banca quer na intervenção pelo controlo, contra o branqueamento de capitais e a criminalidade fiscal e outra. Até hoje não tenho visto essa sensibilidade nas cartas que tenho escrito ao ministro Mário Centeno. Uma das coisas que me inquietam muito é, por exemplo, a Inspeção-Geral de Finanças, que é o órgão máximo de controlo do Estado do ponto de vista financeiro, estar hoje completamente desarticulada, controlada pelas pessoas que Maria Luís Albuquerque lá pôs, em conflitos de interesse brutais - o inspetor-geral de Finanças, Vítor Brás, estou farta de o dizer, não só acumula funções com entidades que são auditadas pela IGF, como a Santa Casa da Misericórdia, como está na lista dos árbitros do CAAD [Centro de Arbitragem Administrativa], que é aquele tribunal dito fiscal onde é suposto agilizar as querelas fiscais, mas que é um tribunal, não estadual, que serve de justiça privada e que serve para o Estado, a Autoridade Tributária [AT], ir lá perder todo o tempo. Pensar que o próprio inspetor-geral de Finanças está nestes conflitos de interesse e foi mantido... e eu escrevi ao ministro Mário Centeno várias vezes.

O governador do Banco de Portugal devia ter sido substituído por este governo?

Havia mais que razões para o governador do Banco de Portugal ter sido destituído e, na minha opinião, devia ter tido a hombridade de se demitir face aos diversos falhanços. O Luanda Leaks é apenas o último. Eu fartei-me de escrever ao Banco de Portugal e tive respostas ridículas, a refugiarem-se no sigilo bancário...

Qual é a explicação para não o ter feito? Consegue explicá-lo?
A explicação não é discernimento, eles sabiam perfeitamente o que é que estava a passar-se, eles escolheram fechar os olhos. Complacência, conivência, falta de vontade de dar combate à criminalidade.

Gostávamos também de a ouvir sobre a situação política atual, ainda por cima com este toque de atualidade que o Presidente da República deu nesta semana com o discurso que fez nos 30 anos do jornal Público. Este governo vai chegar ao fim da legislatura?
Boa pergunta. Devo dizer que concordo muito com aquilo que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa disse ontem no aniversário dos 30 anos do Público, que não se pode iniciar uma legislatura com um ambiente de fim de ciclo e sim, infelizmente é isso que nós temos. Fui uma das vozes que defendiam que este governo, depois das últimas eleições, devia ter trabalhado para uma geringonça 2, portanto, para um acordo que desse estabilidade e perspetivas de haver consenso para se fazerem as reformas de fundo de que o país precisa. Olhe, falávamos de justiça, mas não só.

Mas acha que é António Costa que está a tentar provocar uma crise política?
Não, mas foi António Costa que rejeitou fazer uma geringonça 2 ou o que quer que fosse. Naturalmente, os nossos parceiros eram à esquerda e, designadamente, o Bloco de Esquerda que estaria disponível para isso, e outros partidos, o Livre, o PAN, etc. Naturalmente sem prejuízo de depois poder haver entendimentos que também englobassem o PSD.

Sim, mas a pergunta é porque é que não o fez?
Porque não quis. Porque escolheu não o fazer, porque prefere a negociação à queijo Limiano, caso a caso. Só que essa negociação está a falhar. Estamos a vê-lo no caso do aeroporto do Montijo, vimo-lo recentemente nos lugares para o Tribunal Constitucional. Parece absurdo que o PS não ponha mulheres na lista que apresenta...

E parece-lhe absurdo que tenha sugerido Vitalino Canas?
Parece-me absurdo, já o disse. Absurdo e...

Porquê?
Porque tem uma carga política que não é minimamente compatível com a isenção que se espera de um juiz do Tribunal Constitucional.

Mas então, desse ponto de vista, António Costa também não podia ser primeiro-ministro...
Não, mas o primeiro-ministro é suposto ter a carga política partidária. Um juiz do Tribunal Constitucional é suposto ter isenção, estar por cima, mesmo que até possa ter uma filiação partidária, mas não é o caso de Vitalino Canas, eu disse-o na altura. A mesma coisa em relação aos lugares do Conselho Superior da Magistratura ou do Conselho Económico e Social [CES]. O Dr. Correia de Campos, que eu penso que é uma pessoa absolutamente estimável, que cumpriu, de resto, um trabalho importantíssimo no CES, ser mais uma vez submetido a este vexame... Depois temos a lei das PPP em que a versão do governo acabou de ser derrotada por uma chamada coligação negativa. Portanto, alguma coisa está a falhar.

Está a falhar ou não está a falhar? Porque a questão é: qual é o interesse de António Costa, é fazer cair o governo, ter eleições, ter maioria absoluta?
Ninguém compreenderá isso no país. É por isso que essa observação feita ontem pelo Presidente da República é pertinente. Não sou psicanalista para tentar explicar o que se passa na cabeça do primeiro-ministro quando ele recusa a geringonça 2, o que eu sei é que isto tem um custo tremendo porque implica um desgaste permanente das instituições. Não é só o governo, não é só a Assembleia da República. A Ana Catarina Mendes, de forma infeliz, disse que era a reedição das forças de bloqueio. É evidente que o Parlamento nunca é força de bloqueio. Eu li uma coisa que o Anselmo escreveu em que dizia que era uma trituradora da democracia, e é isso. Isto dá argumentos aos populistas. Isto dá argumentos às forças mais negativas que querem destruir a democracia. É por isso que eu falo nesses combates fundamentais. Quer dizer, esta história de o governo se refugiar numa de "à justiça o que é da justiça" e "à política o que é da política" serve de mantra para tudo, para não se fazer o que é preciso, para não dar combate à corrupção, para não fazer as reformas de fundo que certas instituições absolutamente precisam. Há aqui uma questão fundamental para a sobrevivência do regime, para a sobrevivência da democracia, que é justamente não alimentar tudo aquilo que hoje é explorado pelas forças populistas, nacionalistas, perversas, da desconfiança dos cidadãos em relação às instituições da democracia. Quem, de facto, quer combater o populismo tem de salvar a democracia, tem de fazer a democracia funcionar, tem de fazer as instituições do Estado funcionarem e terem a confiança dos cidadãos. Infelizmente, estamos numa fase em que, por um lado, os cidadãos - isso é positivo - estão mais despertos, estão mais exigentes, estão mais sensíveis mas, por outro lado, veem estes mantras a funcionarem realmente de forma que não inspira tranquilidade e credibilidade às próprias instituições, nomeadamente às governamentais.

Há uma figura que para muitos tem sido fundamental, exatamente na tentativa de encontrar esse equilíbrio de que falava e que é Marcelo Rebelo de Sousa. Nesta segunda-feira assinala quatro anos de mandato, passam quatro anos desde que tomou posse, e estamos a falar de uma figura que passa a ideia de quase unanimidade nacional. O que é que essa unanimidade esconde?

Eu acabei de mostrar que até tinha sintonia com o Presidente da República na apreciação que ele acaba de fazer, e tenho muita consideração e muita simpatia pessoal, de resto, pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa, que até foi meu professor e que até me deu uma excelente nota [risos]... Mas ele é de direita e eu sou de esquerda, sou socialista, sou de esquerda. Portanto, temos perspetivas diferentes.

Ele tem feito uma Presidência à direita?
Acho que ele tem servido muito bem a Portugal e descomprimiu extraordinariamente o país desde aquela rigidez que nós vivíamos sob a presidência do professor Cavaco Silva. E tem tido um papel importante, inclusivamente de apoio ao funcionamento da geringonça que é extremamente positivo, e até do ponto de vista da nossa representação externa. Embora eu jamais me sentasse, como ele se sentou, na mesma mesa do ditador Obiang no quadro da CPLP, jamais. Há limites. Ainda por cima é um ditador que além de torcionário é mentiroso, nunca cumpriu os compromissos que assumiu no quadro da CPLP, etc. Eu também não favoreço a forma indireta que o professor Marcelo utilizou para anunciar os pré-vetos a alguns diplomas legislativos, por exemplo, se acabassem as PPP na saúde... Felizmente, na questão da eutanásia acho que ele fez bem, não tomou posição e recusou-se a tomar posição.

O caso de Tancos deixou marcas em Marcelo?
Tancos deixou marcas no país. Tancos é um caso gravíssimo. Deixou marcas nas forças armadas, mostra não só o desarmamento do Estado, ao ponto de o armamento das forças armadas estar a ser objeto de traficância, por ação, omissão, negligência de várias pessoas, mas depois, aquela cena que eu só vi na Indonésia, nos tempos do PREC da Indonésia, que é forças do Estado contra outras forças do Estado, a conspirarem e em rivalidade. Portanto, claro que deixa marcas no país, deixa marcas graves.

Mas no caso do Presidente houve algumas tentativas de o envolver e houve suspeitas.

Houve porque altos quadros quer da presidência quer do governo estavam envolvidos e, naturalmente, é difícil perceber, sabendo esses quadros o que sabiam, estando ao corrente, por exemplo, da operação da Polícia Judiciária Militar, que não tivessem dito ao Presidente da República. Eu trabalhei na Presidência da República com o general Eanes e é evidente que havia muita coisa que se sabia ao nível da Casa Civil e da Casa Militar e que não chegava ao Presidente. A mesma coisa presumo em relação ao governo. Agora, esta é uma questão essencial e o Presidente tem dito que quer que ela se esclareça até ao fim. Eu também quero. É gravíssimo e, além do mais, é outra coisa que dá uma imagem desastrosa da segurança em Portugal, se as próprias forças armadas estão a ser objeto de um grande desinvestimento, perigoso, como, aliás, agora vários generais e almirantes acabaram de escrever ao Presidente da República. Gostava que se conhecesse essa carta e a resposta do Presidente da República. Houve uma notícia até que sugeria que a resposta do Presidente da República era displicente, mas aparentemente não é assim. Era bom que se conhecesse a carta e a resposta do Presidente da República, porque ele é o Comandante Supremo das Forças Armadas e, naturalmente, tem responsabilidades. Eu sou uma das pessoas que acham que precisamos de ter forças armadas bem equipadas. Precisamos delas para trabalhar em conjunto com os nossos parceiros europeus. Como este caso da pandemia mostra, estamos numa era global em que as soluções não podem passar por fechar as fronteiras, pseudonacionalismos; é pela cooperação e regulação internacional. Seja para vencer o coronavírus seja para dar cabo dos offshores e dos esquemas de evasão fiscal a nível global, para dar conta da transição energética ou da regulação digital. Nós precisamos de cooperação internacional e por isso necessitamos de um Estado forte e de forças armadas capazes.

Já disse que o PS devia ter um candidato próprio nas próximas presidenciais. António Costa deveria esclarecer já isso no próximo congresso?

O Partido Socialista deveria ter um candidato próprio às eleições presidenciais. Acho que isso só dignifica o próprio debate presidencial, independentemente de quem vier a ser eleito. Não tenho dúvidas nenhumas de que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa vai recandidatar-se e que ganhará. Mas considero que este é um momento de debate político. Não concordo com a tese construída, abstrusamente suponho, no tempo de Sócrates, de que o PS não tem de ter candidato às presidenciais. Bom, o resultado dessa tese foi pôr lá o professor Cavaco Silva e depois o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Portanto, do meu ponto de vista, o PS deveria ter um candidato que conseguisse federar à esquerda. Reunir todos e pôr na agenda uma discussão que interesse à esquerda.

O que eu não aceito é que o PS, não tendo posição, se preste a pôr-se a jeito para favorecer aquilo que inevitavelmente o professor Marcelo Rebelo de Sousa num segundo mandato quererá: favorecer o "centrão", um entendimento do bloco central. E isso é altamente negativo para a democracia. É por causa do centrão que nós estamos no esquema de corrupção em que hoje estamos. Não é de agora e é herdado desses tempos do centrão e tem tudo que ver com o seu funcionamento e mesmo quando o centrão não está no poder, está por trás, nas organizações subterrâneas.

Não pensa que possa acontecer aquilo que aconteceu nas eleições anteriores que foi haver dois candidatos que dividiram o voto socialista?

Esse é outro aspeto ainda mais perverso deste "não ter posição" ou apoiar frouxamente um ou outro candidato como aconteceu com o Sampaio da Nóvoa. E portanto o PS também tem alguma coisa a defender. O Dr. Mário Soares daria uma volta no túmulo se o PS nada fizesse e deixasse o professor Marcelo Rebelo de Sousa ultrapassar os tais 70% com que foi eleito Mário Soares em 1991 [risos]. Portanto, não me passa pela cabeça que o PS não tenha posição.

Quem afirma como acabou de afirmar que não tem dúvidas nenhumas de que o professor Marcelo vai recandidatar-se e que ganhará, não quer dizer que vai candidatar-se contra ele?

Não. Estou farta de dizer que não penso candidatar-me. Vocês é que andam para aí a especular. Vocês, jornalistas.

Não somos nós; é quem a apoia. E todas as semanas têm aparecido mais pessoas a apoiá-la. Não há aqui uma vaga de fundo para a Ana avançar?
Eu sei muito bem onde estou, na minha pele, com toda a liberdade que hoje tenho, só limitada pela minha própria consciência. Naturalmente que me sinto lisonjeada e agradeço a todas as pessoas que têm expressado esse apoio porque que se reveem nas posições que eu expresso. Mas o meu papel é precisamente falar desses temas, que são importantes e deviam estar na agenda diária, em vez estar a falar de coisas que a seu tempo trataremos. A questão das eleições presidenciais é daqui a quase um ano.

Mas nunca fecha a porta?
Eu nem a fecho nem a deixo aberta. Não estou aí. Estou a fazer o meu trabalho. O importante é discutir o que tem de ser discutido hoje e não o que se vai passar daqui a uns meses.

Mas então nunca diz nunca?
Eu não sei o que é que se vai passar amanhã. Não sei se me acontece uma coisa qualquer. Nunca fiz projetos a longo prazo. Não tenho essa ambição. Tenho a ambição de intervir civicamente, utilizando todos os conhecimentos que tenho, as informações que muita gente de bem neste país me dá, e pondo o dedo nas feridas que muita gente quer ignorar mas que precisam de ser tratadas para salvarmos a democracia.

Do que já disse até agora - que Marcelo vai recandidatar-se, que provavelmente ganhará estas eleições, que o PS não devia deixar de apoiar um candidato, e que o primeiro-ministro nunca permitiria a sua candidatura - essa candidatura tanto poderia ser um problema como uma solução para António Costa.

Isso é uma questão para o António Costa. E ele com a experiência vasta que tem saberá muito bem como a resolver. Eu disse isso no contexto de não querer dividir o PS. Não quero. Acho muito errado o PS ter ido já por duas vezes com dois candidatos e, portanto, ter favorecido o candidato da direita, que conseguiu ser eleito.

Admitindo a hipótese de vir a ser candidata, nunca o seria contra um candidato do PS?
O que eu disse foi justamente que o PS nunca deve voltar a ter dois candidatos e não ter uma posição clara. O PS tem de ter um candidato e tem de ir discutir civilizadamente as questões que interessam nas eleições presidenciais. E não pode ir com dois candidatos, tem de ir apenas com um.

Portanto, não sabendo o dia de amanhã, mas nunca dizendo nunca, só admitiria ser candidata à Presidência da República se: 1 - fosse a candidata do PS, ou 2 - o PS não tivesse candidato?
Não insista. Eu não tenho essa ambição. Estou muito bem onde estou. Estou muito bem na minha pele, com a liberdade que hoje tenho.

Estou só a perguntar qual é a sua linha vermelha para ser candidata.
Mas eu não sou candidata. Essa questão nem se me põe. Estou a intervir civicamente como socialista que sou por aquilo que eu considero ser importante para Portugal. Naturalmente, estou muito preocupada por ver que a oposição ao professor Marcelo vá ficar nas mãos de um indivíduo oportunista, arrivista, sem escrúpulos, como André Ventura. A única coisa boa foi que ele se declarou candidato à "previdência", não foi? É tão "buçal" com "u" como ele escreve nos livros dele - que eu também deixo à psicanálise.

Isso podia ser uma motivação extra para si?

É uma coisa que preocupa muita gente. Gente que está preocupada com a oposição ser feita por um indivíduo sem escrúpulos e mentiroso como é André Ventura. A dizer todas as contradições que aí já estão expostas: as migrações ao contrário do que defende o partido, a promessa da exclusividade no Parlamento ostensivamente violada visto que ele ganha dinheiro na CMTV, numa consultora fiscal, e a contradição de ele falar contra o planeamento fiscal e andar a vender vistos gold e soluções de planeamento fiscal na tal Finpartner dos irmãos Caiado Guerreiro que fazem exatamente isso.

O que é que lhe dizem os crescimentos grandes que ele tem tido nas sondagens?
Dizem-me que há muita gente que se sente descartada pelas teses neoliberais que no fundo contaminaram tudo, incluindo a própria família socialista a nível europeu e global, e até cá, e que têm uma tentação antissistema e é exatamente isso que os populistas, oportunistas, cavalgam. A única maneira [de combater esse crescimento] é não só explicarmos e demonstrarmos as mentiras e o populismo dessa gente mas também a [sua] perversidade que nós sabemos que tem como objetivo destruir a democracia. Temos de alertar os cidadãos que têm preocupações sérias e legítimas em relação ao funcionamento do Estado, que se sentiram maltratados pela crise, que a solução não é apostar em soluções contra os partidos e a democracia, mas sim exigir aos partidos políticos e ao Estado transparência e prestação de contas.

Vê o PS com essa vontade?
Vejo muita gente no PS com essa vontade. Sei que, infelizmente, o PS sendo um instrumento de poder é também, obviamente, um instrumento vulnerável à captura; e sei que há pessoas no PS capturadas, como há em todos os partidos de poder. Mas não tenho dúvida nenhuma de que a maioria dos militantes e dirigentes socialistas são sérios e querem o melhor para o país e gostariam de fazer as reformas que o país precisa para dar confiança aos cidadãos e um futuro melhor aos nossos filhos e netos.