Sociedade
08 fevereiro 2023 às 00h11

"É frustrante concluir que ninguém dá valor ao novo facto científico se não vier acompanhado de mensagens bombásticas"

Comunicar Ciência é o tema a debate no ciclo Desafios da Ciência na Sociedade Contemporânea, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A iniciativa, com a presença de Rodrigo Cunha, investigador e docente no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, decorre online, via Zoom, hoje a partir das 18.00 horas. Em entrevista, o conferencista detalha algumas das questões que leva ao encontro.

Jorge Andrade

A pandemia dos últimos anos tornou evidente a necessidade de comunicar ciência para um público alargado. Subitamente, a sociedade clamou pela presença nos media de especialistas de diferentes áreas. Em seu entender, a forma como se lidou com a comunicação neste período foi clara e marcou um momento decisivo na comunicação da ciência no nosso país?
A forma como a sociedade procurou informação científica assemelha-se à da criança que encontra pela primeira vez, por exemplo, um carro voador e procura no pai respostas. O pai engendra umas explicações baseadas no seu conhecimento de vida, mas com muitas extrapolações. A resposta só seria cientificamente fundamentada se o pai fosse físico ou engenheiro aeronáutico ou tivesse estudado previamente o assunto. A resposta da maioria dos comunicadores científicos foi semelhante: face a algo que também não conhecíamos, foram feitas analogias e extrapolações mais ou menos lógicas para ir respondendo à premência de questões.

Talvez o maior mérito deste período intenso de procura generalizada de informação científica, foi o de recordar que a atividade científica tem um valor societal importante e chamar a atenção para a necessidade de contactar com uma parte do conhecimento que é largamente ignorada pela maioria da população fora de períodos de crise.

Podemos encontrar aí, nessa procura generalizada de informação, uma das virtudes do período pandémico. É um aspeto positivo...
Este recurso súbito a apoio científico sugere-me algumas considerações. Primeiro, a coragem de quem deu a cara para fazer o papel do "pai", tentando enquadrar na normalidade do conhecimento aquilo que manifestamente eram incógnitas. Segundo, a constatação da enorme ignorância científica da população em geral, o que permitiu o advento de incríveis vagas de desinformação, assim como de intermediários no processo de divulgação científica com uma frequente dissociação entre o reconhecimento de alguém como especialista pelos pares e a seleção feita pelos órgãos de informação. Refira-se algumas decisões erráticas dos decisores políticos baseadas em opiniões de supostos "especialistas" em detrimento de factos e evidências. Terceiro, a oportunidade perdida desta ocasião de demonstrar inequivocamente que o conhecimento não está disponível para ser usado, mas tem de ser laboriosamente construído para poder ser aproveitado: o custo para a sociedade desta pandemia foi dramatizado pela falta de investimento, diria mesmo crescente desinvestimento, ao longo dos anos na investigação em microbiologia em geral e médica em particular.

A extraordinária celeridade na obtenção de uma vacina e a sua também surpreendente eficácia só foram possíveis graças ao desenvolvimento de uma área de pesquisa, a biologia do RNA, que foi alicerçada em motivações que não tinham a ver com esta aplicação. Sem um grande investimento desinteressado na busca de conhecimento, este nunca estará disponível para poder ajudar a resolver problemas. Esta premissa está a ser amargamente confirmada com o marcado aumento "anormal" de falecimentos desde há quase um ano em Portugal e no mundo ocidental em geral.

Das suas palavras retiramos que a premência por explicações de caráter científico e consequentes resultados em momentos de crise colide com o tempo ponderado que exige a investigação científica?
A ciência procura gerar novo conhecimento. A génese deste novo conhecimento é feita por indivíduos "angustiados" por quererem saber a razão do porquê. Os cientistas querem conhecer as causas e consequências do problema, não têm como leitmotif imediato resolver o problema. O cientista quer conhecer os processos moleculares envolvidos na capacidade do SARS-CoV-2 interagir com uma célula endotelial e faz experiências várias nesse sentido. O médico tem uma responsabilidade muito diferente, a de diminuir o sofrimento do doente com covid-19. O cientista busca conhecimento, o médico "trata". São dois mundos muito diferentes, o primeiro de cultura o segundo de aplicação.

Não se faz ciência por decreto, com decisões como "vamos curar o cancro". São décadas de estudos que permitiram alguns sucessos retumbantes como inverter a possibilidade de hoje curar cerca de 90% dos doentes que sofrem de linfomas de Hodgkin [cancro do sangue] quando há algumas dezenas de anos morriam 90% destes doentes.

É fundamental perceber que o recurso a conhecimento científico para resolver as próximas crises naturais depende em absoluto de um investimento antecipado na génese desinteressada de conhecimento científico. A ciência é fundamentalmente uma forma de cultura.

Nas últimas décadas, a Europa tem desenvolvido um movimento para aumentar a cultura científica dos cidadãos. Portugal tem seguido este modelo de desenvolvimento?
Não tenho a perceção que haja um marcado desenvolvimento da cultura científica no espaço Europeu, embora reconheça o esforço que é feito nesse sentido por um número ainda muito limitado de atores. Em Portugal, a iniciativa Ciência Viva tem contribuído de modo esforçado e competente para fazer chegar a cultura científica a um maior número de jovens. Contudo, a crescente, e muito natural, complexidade dos problemas e velocidade dos avanços no conhecimento fruto de meios tecnológicos cada vez mais eficientes, estão constantemente a aumentar o fosso entre o conhecimento científico gerado e a capacidade de perceção deste conhecimento por uma população com rudimentos de cultura científica ainda demasiado limitados.

Quer aprofundar quais as consequências práticas do fosso que refere?
O fosso a que me refiro gera um desperdício a vários níveis: nos atores económicos porque perdem oportunidades ímpares de desenvolvimento. Veja-se o número de unicórnios de base científica que não tiveram o desenvolvimento esperado. Nos atores políticos porque tomam decisões de menor qualidade por não saberem compilar a informação mais relevante. A sociedade como um todo porque não participa na definição das prioridades na sua sustentabilidade e desenvolvimento. Isto é bem ilustrado pelo nível do debate relativo aos temas científicos mais discutidos como a -19, alterações climáticas e organismos geneticamente modificados. Grassa desinformação e vozes várias a opinarem, mas não são criticamente discutidos dados objetivos.

Esta falta de cultura e conhecimento científicos limita também fortemente a valorização pelo público do aporte oferecido pela ciência para a sua qualidade de vida. Quem lidou heroicamente com a -19 foram os médicos. Mas quem tornou possível o desenvolvimento de uma vacina? Certamente não foram os clínicos, pois não é esse o seu papel. Quem sabe que em Portugal existe um dos grupos de investigação mais importantes no avanço do conhecimento da biologia do RNA que tornou possível o desenvolvimento das "melhores" vacinas utilizadas no combate à pandemia? Este é só um exemplo de como é pouco realista esperar uma valorização do conhecimento científico sem a cultura científica de base suficiente para apreciar o problema. Se assim fosse, o público faria a pressão necessária para ter regularmente programas na televisão sobre ciência.

Um bom investigador não tem necessariamente de ser um bom comunicador. Contudo, as exigências deste nosso mundo exigem a presença em público de cientistas. Essa exigência é percecionada e valorizada por parte dos investigadores portugueses?
Cada vez mais um bom cientista tem de ser um bom comunicador de ciência. Este fator começa por ser importante na apresentação aos pares do conhecimento gerado, dentro do grupo, dentro do centro de investigação e em encontros científicos. Um segundo nível de comunicação é exigido no contacto com financiadores, quer de agências governamentais, quer fundações quer agentes privados. Um terceiro nível de comunicação, diria que muito diferente dos anteriores, é a comunicação com o público dito "leigo". Esta forma de comunicação científica é muito pouco treinada, tanto quanto tenho conhecimento, nos grupos de investigação. E é a este nível que se notam as maiores diferenças entre "comunicadores". De maneira muito crua, ser um bom comunicador de ciência para "leigos" tem um retorno muito limitado para um cientista ou grupo de investigação. Num mundo muito materialista, onde se hierarquizam prioridades em função do retorno, a comunicação em ciência está longe de estar no topo das prioridades de um cientista. Continuando num tom muito cru, não antecipo que o tempo que investi nas respostas a esta entrevista me irá trazer algum retorno e poderia sido "melhor" utilizado na preparação de um dossier de solicitação de um financiamento ou na escrita de um artigo científico.

Porque aceita então usar parte do seu tempo para discutir a divulgação científica?
Certamente porque faz parte da minha perceção de responsabilidade social, mas não tenho pejo em confessar que participo nestas iniciativas de divulgação sempre de modo limitado, respondendo a solicitações pontuais e sem nunca ter desenhado uma estratégia de divulgação. Esta atitude acarreta a limitação de eu não procurar profissionais para aprimorar a comunicação científica e os centros de investigação e Universidades terem uma política limitada de apoio a divulgação científica para o público. O resultado é um amadorismo assumido neste tipo de atividades e por isso a comunicação científica para o público é feita com mais ou menos "jeitinho" por cada cientista. Segue a velha máxima de you pay peanuts, you get monkeys.

Há um certo desencanto no seu discurso...
É frustrante ter a perceção simultânea da beleza e relevância de um novo facto científico e da dificuldade de ele ser entendido pelo público em geral. É frustrante ter a perceção que o limite de atenção da maioria do público é de escassos minutos quando seriam necessárias uma dezena de minutos para tornar percetível a relevância do novo facto científico, mesmo com muitos "pontapés na gramática". É frustrante perceber que tenho de ser cientificamente incorreto para ser percebido pelo público. É frustrante concluir que ninguém fora da comunidade científica dá valor ao novo facto científico se não vier acompanhado de mensagens bombásticas de uma cura de doença ou fim da fome no mundo. É angustiante antecipar que a ultra-simplificação de uma mensagem pode levar à sua completa deturpação. Dou-lhe um exemplo: uma mulher que fuma deve parar de fumar quando fica grávida? Se a resposta for diferente de um rotundo "sim" e for algo como "deve tentar diminuir tanto quanto possível a quantidade, até que o stresse resultante da cessação seja tal que possa causar mais dano ao feto que o fumar", corremos o risco de ver como título deste esforço de divulgação "Cientista defende fumar na gravidez". Finalmente é frustrante ver que o esforço feito para divulgação do novo facto científico muitas vezes não tem impacto percetível na sociedade, nem cultural nem de potencial económico nem de qualidade de vida.

A internet devolve-nos centenas de resultados de blogues, sites, perfis nas redes sociais de divulgadores científicos. Este acesso quase ilimitado ao conhecimento torna a nossa sociedade mais informada sobre ciência ou exposta a riscos?
O desafio hoje não é obter informação, mas selecionar a informação. Sobretudo separar a informação da desinformação. Este filtro qualitativo requer cultura científica, que infelizmente escasseia na população. Usando uma metáfora, a disponibilidade quase ilimitada de conhecimento é como a disponibilidade de produtos alimentares num supermercado. Sem um claro conhecimento de princípios básicos de dietética, a acessibilidade ilimitada a bolachas, refrigerantes e batatas fritas vai contribuir para obesidade e doença e não para uma boa qualidade de vida. Tal como os consumidores muitas vezes escolhem os produtos com maior retorno hedónico, também o público seleciona a informação pelo impacto emocional, como o sensacionalismo dos títulos e adesão da mensagem com o seu património de experiências e comportamentos.

Nas notas que antecedem a conferência em que participará escreve que o "crescente imediatismo hedónico diminui a curiosidade face à emoção". O que nos quer transmitir com estas palavras?
Descobrir algo é um verdadeiro prazer que faz mover os cientistas. Mas para isso é preciso muito trabalho até chegar ao momento do Eureka!. A sociedade está cada vez mais formatada para a procura de prazer imediato. A satisfação desta procura exige propostas simples que gerem muito rapidamente uma emoção tão intensa quanto possível. Cada vez há menos espaço e menos apetência para olhar, observar questionar e usar o tempo que é necessário para compreender. A procura é do imediatismo hedónico que gere uma emoção rápida, não do processo esforçado de satisfação lenta da curiosidade.

Siga a conferência aqui:

https://videoconf-olibri.zoom.us/j/92374028924

ID da reunião: 923 7402 8924