20 anos de Nobel com militância comunista de Saramago de fora
Depois de muito se ter falado do esquecimento da comemoração das duas décadas sobre a atribuição do Nobel a Saramago, a festa começa hoje e em grande. No partido em que o escritor militou, o PCP, ninguém foi convidado.
As comemorações dos 20 anos sobre o anúncio do Nobel da Literatura para José Saramago começam neste sábado e só terminam no fim do ano, com uma agenda intensa, rica e diversificada. Parece que as queixas ouvidas na primeira metade do ano sobre a ausência de celebrações oficiais deixaram de ter sentido, afinal nenhum outro escritor português é capaz de reunir em Lanzarote os dois primeiros-ministros ibéricos como acontece hoje para evocar Saramago na ilha onde se "exilou" após as polémicas de Evangelhosegundo Jesus Cristo.
Os convidados e protagonistas da programação são muitos, no entanto a militância de sempre de Saramago no PCP ficou esquecida, pois não chegou ao partido ou ao secretário-geral, Jerónimo de Sousa, qualquer convite para participar nos muitos eventos agendados. Ao DN, o não convite foi confirmado assim e de forma curta: "Não temos registo de qualquer convite ao partido nem ao secretário-geral, Jerónimo de Sousa." O PCP, contudo, não ignorará as comemorações, tendo revelado que "vai promover uma iniciativa no próximo dia 14, pelas 16.00, no Centro de Trabalho Vitória (em Lisboa)". Acrescentam que a escolha do local não é por acaso: "Há 20 anos, este foi um dos primeiros lugares aonde José Saramago se deslocou quando chegou a Portugal [após o anúncio do Nobel] para participar de uma sessão promovida pelo partido que vai ter um momento cultural com a participação de Jerónimo de Sousa."
A sua filiação aos ideais comunistas e socialistas sempre fizeram parte da obra de Saramago, seja no primeiro romance que o torna notado, Levantado do Chão, seja em epígrafes em Objeto Quase, em anotações como as do Caderno de Lanzarote V, no pessoano Ano da Morte de Ricardo Reis, entre outros livros, bem como em frequentes presenças na Festa do Avante! ou em constantes respostas em entrevistas em que lhe era perguntado porque continuava comunista. A um jornal brasileiro respondeu: "Sou aquilo que se podia chamar um comunista hormonal"; a um português - referência na página 195 deste Último Caderno de Lanzarote - disse: "Ser-se comunista ou ser-se socialista é, além de tudo o mais, e tanto como ou ainda mais importante do que o resto, um estado de espírito."
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Ao DN, o líder do PCP considerou que a "atribuição do Prémio Nobel colocou Saramago na galeria dos escritores maiores, o único até hoje atribuído a um autor de língua portuguesa, que conferiu uma dimensão mundial, sem precedentes, à literatura, à língua e à cultura portuguesas, tornando-se o mais universal dos escritores portugueses, traduzido e editado em dezenas de países." No que se refere à militância, Jerónimo de Sousa fez questão de destacar sobre José Saramago: "Comprometido com os explorados, injustiçados e humilhados da terra, assumiu valores éticos e um ideal político do qual não abdicou até ao fim da sua vida neste Partido Comunista Português que quis que fosse o seu."
Líderes ibéricos em Lanzarote
Será António Costa o primeiro a agradecer o Nobel da Literatura em nome do Estado português, deslocando-se neste fim de semana aos "lugares emblemáticos da vida e obra de José Saramago". Hoje em Lanzarote, na companhia do seu homólogo espanhol, Pedro Sánchez, mostrando o quanto o Nobel era um escritor ibérico; amanhã, domingo, visita a Azinhaga do Ribatejo, onde o autor nasceu, e locais de Lisboa relacionados com a vida e a obra do autor.
O ex-autarca de Lisboa foi o grande defensor da cedência da Casa dos Bicos para ser a sede da Fundação José Saramago, uma proposta que contou, em 16.07.2008, com os votos favoráveis de PS, Cidadãos por Lisboa, PCP e BE, enquanto os partidos de direita foram contra. O debate antes da votação foi tão acalorado que Costa criticou a "mesquinhez da direita portuguesa" ao opor-se aos custos das obras de adaptação do edifício. A proposta seria ratificada pela Assembleia Municipal, instituição em que Saramago integrara por várias vezes as listas eleitorais do PCP.
Para Saramago, este acordo com a Câmara de Lisboa foi um dos momentos de maior felicidade na sua vida, conforme referiu ao DN durante uma reportagem em que visitava as obras na Casa dos Bicos, tendo mostrado o local onde desejava ter o seu gabinete pessoal, virado para o rio Tejo, espaço que nunca chegou a utilizar devido à sua morte, a 18 de junho de 2010, na localidade de Tías, Lanzarote.

O escritor com Maria Kodama e António Costa.
© Leonardo Negrão/Global Imagens
Um inédito num programa intenso
O programa oficial das comemorações foi revelado pela Fundação José Saramago e inclui inúmeras iniciativas nacionais e no estrangeiro. A esta agenda junta-se também a atual editora da obra, a Porto Editora, com a edição de um inédito, o Último Caderno de Lanzarote , o sexto e último volume que ainda faltava publicar, bem como os títulos ainda não editados. Outra iniciativa é do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, um importante congresso internacional: José Saramago: 20 Anos com o Prémio Nobel, bem como uma evocação ao escritor em novembro no segundo maior evento literário do género, a Feira do Livro de Guadalajara, no qual Portugal é o país convidado.
A publicação do inédito de Lanzarote acontecerá nesta segunda-feira em Portugal e resulta da descoberta recente pelo especialista em José Saramago Fernando Gómez Aguilera, do sexto volume dos Cadernos de Lanzarote esquecido no disco rígido do computador do escritor. Este será sem dúvida o ponto alto das comemorações, pois permite aos leitores do escritor português voltar a ler a sua prosa memorialista. O diário conta com a habitual redação destes cadernos até ao dia 5 de outubro de 1998, a véspera do dia em que a literatura portuguesa e lusófona foi pela primeira e única vez homenageada com um Nobel. A partir desse momento, a roda-viva em que Saramago entrou impediu-o de redigir da forma habitual, o que fica documentado neste livro através das anotações esparsas de iniciativas em que participou até ao fim do ano, das entrevistas que foi dando e de alguns momentos em que fez notas maiores ou a reprodução de textos de conferências que deu nesses meses, bem como o discurso feito na Academia Sueca ao receber das mãos do rei Gustavo da Suécia o Prémio Nobel da Literatura.

O rei Gustavo entrega o diploma do Nobel a Saramago.
© AP
A primeira entrada corresponde à data de 1 de janeiro de 1998 e começa assim: "Durante a noite, o vento andou de cabeça perdida, dando voltas contínuas à casa, servindo-se de quantas saliências e interstícios encontrava para fazer soar a gama completa de instrumentos da sua orquestra particular, sobretudo os gemidos, os silvos e os roncos das cordas, pontuados de vez em quando pelo golpe de uma persiana mal fechada." Seguem-se os passos matinais do escritor em observação dos estragos em volta da casa, o que acontecera aos cães e aos gatos, às palmeiras e às oliveiras: "Tudo parecia estar em ordem, podia ir preparar o meu pequeno-almoço de sumo de laranja, iogurte, chá verde e torradas com azeite e açúcar."
A revelação desta primeira entrada na última edição do Jornal de Letras mereceu um comentário do atual editor da obra saramaguiana, Manuel Alberto Valente, em que refere os "acasos do destino" e a sua "responsabilidade editorial" em Alabardas, o datiloscrito inédito publicado em 2014, e agora neste Último Caderno de Lanzarote: "Um grande acontecimento editorial e um enriquecimento notável da bibliografia do autor de Memorial do Convento." Na mesma edição do JL, também o editor dos livros que levaram Saramago até ao Nobel, Zeferino Coelho, recorda quando "se falava do Prémio Nobel e nos queixávamos dos suecos que não reparavam nas glórias vivas e mortas que mourejaram e mourejavam por aqui", numa vibrante memória sobre o seu autor nobelizado.

José Saramago em Lanzarote.
© AP
A Porto Editora revelou também uma parte do Último Caderno de Lanzarote, em que José Saramago comenta a sua diarística: "Duas razões me levaram, mais ou menos conscientemente, a escrever um diário: em primeiro lugar, a circunstância de ter saído do meu país para viver nesta ilha distante; em segundo lugar, a necessidade, que nunca experimentara antes, de 'reter' o tempo, de o obrigar, por assim dizer, a deixar o maior número possível de sinais da sua passagem.Cadernos de Lanzarote é como uma longa carta enviada àqueles que ficaram no outro lado, mas é também um modo (vão, inútil, quem sabe mesmo se desesperado...) de fingir prolongar a vida por uma obstinada 'escrituração' dos dias. Os Cadernos não são um laboratório, embora não falte neles reflexões sobre o 'fazer' literário; não são um registo dos casos do mundo, embora abundem os comentários sobre a atualidade; não são uma coleção de dados para uma futura biografia, embora vão dizendo o que faço e o que penso. Como todo o diário (como toda a escrita), os Cadernos de Lanzarote são um exercício narcisista, mas, contra o que geralmente se crê, Narciso nem sempre gosta do que vê no espelho em que se contempla..."

Agenda de eventos
A Fundação José Saramago organiza ou coorganiza várias das atividades das comemorações sobre os 20 anos do Nobel para Saramago. A de hoje e amanhã em Lanzarote e na Azinhaga em colaboração pelo gabinete do primeiro-ministro, que reúne António Costa e Pedro Sánchez.
De segunda a quarta-feira, decorre o Congresso Internacional José Saramago: 20 Anos com o Prémio Nobel, com mais de seis dezenas de comunicações e mais de 300 participantes.
Apresentação em Coimbra do Último Caderno de Lanzarote no dia 8 e depois a 12 em Lisboa, dia em que a Biblioteca Nacional de Portugal inaugura uma exposição documental dedicada a José Saramago. Nesta sessão será também apresentado Um País Levantado em Alegria , de Ricardo Viel, um interessante e vasto relato dos bastidores dos momentos que antecederam e sucederam ao anúncio do Prémio. Seguem-se lançamentos em Lanzarote a 25 na Fundação César Manrique e a 29 no Porto, na Biblioteca Almeida Garrett.
A 15 de dezembro, a encerrar as comemorações, há a estreia mundial da sinfonia Memorial em Lisboa, na Culturgest, composta por António Pinho Vargas.
Na sede da fundação, realizam-se sessões a 31 com Ana Margarida Carvalho sobre os contos de José Saramago, a 7 de novembro com António Mega Ferreira sobre a poesia de José Saramago, a 14 de novembro, com Jorge Vaz de Carvalho sobre a música na obra de José Saramago e a 5 de dezembro com Carlos Reis sobre o romance saramaguiano.
A 10 de dezembro será inaugurada no Torreão Poente da Praça do Comércio a exposição A Rebeldia de Nobel , com fotografias e textos de mais de duas dezenas de escritores vencedores do Prémio Nobel de Literatura.
A 14 de dezembro, no Museu do Estado do Pará, inauguração da exposição Saramago - Os Pontos e a Vista, com curadoria de Marcello Dantas.
