Miguel Guimarães: "O Porto não precisa de esmolas do governo"

A meio do mandato de três anos à frente da ordem, o bastonário dos médicos continua com um pé em Lisboa e outro no Porto. Mas não se define como regionalista e até considera "muito estranha" a decisão de deslocalizar o Infarmed.

Urologista, com participação em mais de 400 transplantes no currículo, Miguel Guimarães, 56 anos, faz questão de continuar a dar consultas no Hospital de São João todas as quintas-feiras e de estar "de chamada" para transplantação uma vez por mês. Quer manter a ligação ao terreno, diz, por oposição ao ministro da Saúde, que rotula de académico que pouco visita os hospitais e centros de saúde.

está ambientado a Lisboa?

Sim, a Lisboa já estou habituado e ao cargo também. O que é difícil é habituar-me a este volume de resposta e à capacidade de resposta que o bastonário tem de ter. Eu fui presidente do Conselho Regional do Norte e quer a pressão, quer a responsabilidade, quer a carga de trabalho são muito diferentes e não é fácil porque tem de se dar resposta a várias coisas ao mesmo tempo... Temos sempre muita coisa a acontecer. Hoje já assinei cerca de 30 ofícios.

Mas tem casa no Porto.

Tenho casa na Maia, família no Porto e eu ando de um lado para o outro. Passo uma parte do tempo em Lisboa, onde não tenho casa, fico num hotel.

E como se gere a relação familiar entre tantas viagens, em especial num casal de médicos? Fala-se muito de medicina em casa?

Fala-se pouco de medicina, mas também se fala. Fala-se da ordem também e de assuntos privados que são os mais importantes, nomeadamente de férias e política.

Mantém grande ligação ao Porto? É um regionalista?

Por definição não sou regionalista. Acho que o regionalismo acaba por ser contraproducente. Acho que as pessoas devem ter um gosto especial pelas suas gentes, as suas terras e a sua cultura. Outra coisa é ser regionalista, que é ter um estigma que a sua terra é prejudicada ao invés de tentar realçar aquilo que são as vantagens que tem a sua cultura própria. Isso é que é importante porque quando as pessoas são demasiado fanáticas, por exemplo por um clube de futebol, fica logo tudo estragado, tudo funciona mal. As pessoas perdem o sentido...

Não tem sequer clube de futebol?

Não, mas se me perguntar qual é o clube de que gosto mais é do FC Porto. Nasci no Porto, é natural que tenha esta identificação. Mas daí a ir ver jogos do Porto... raramente fui ao futebol, portanto não é coisa para a qual tenha grande apetência. Nem em miúdo tive grande ligação ao futebol. Joguei voleibol no Sporting de Espinho e joguei hóquei em patins...

É importante descentralizar, desenvolvermos o país mais além do que é Lisboa e Porto e isso não se resolve desta forma. Quem precisa de mais apoio não é o Porto, é o resto do país...

Defende a decisão de levar o Infarmed para o Porto?

Eu nunca me pronunciei sobre isso, isso é uma questão política. E eu nunca me pronunciei de propósito, por dois motivos: não compete à Ordem dos Médicos (OM) decidir se uma instituição como o Infarmed deve estar sediada no Porto ou em Lisboa - compete ao governo. Segundo aspeto: não tenho conhecimento de que o Infarmed esteja a funcionar mal em Lisboa, bem pelo contrário. O Infarmed é uma entidade que tem funcionado relativamente bem de uma forma geral, independentemente das auditorias que possa haver e revelar falha - as falhas são coisas que acontecem. Todos falhamos e isso revela o nosso humanismo. O Infarmed tem técnicos altamente diferenciados que se fixaram na cidade, muitos não serão de Lisboa, e que não são fáceis de substituir. Acho que o governo e o Ministério da Saúde deviam ouvir mais quem faz o Infarmed. É fundamental quando se pretende fazer uma mudança, a não ser que estivéssemos numa situação crítica em que o funcionamento da instituição era péssimo, sobre o Infarmed nunca ouvi falar disso nos últimos tempos. O que ouvi foi da Agência Europeia de Medicamentos, de o governo ter tomado duas decisões num curto espaço de tempo (uma de que Lisboa ia ser a concorrente e depois ia ser o Porto), depois na sequência de a agência europeia não vir para Portugal anunciarem no dia a seguir que o Infarmed ia mudar para o porto. Acho esta história muito estranha, para não dizer outra coisa. O Porto vale por si. O Porto não precisa de esmolas do governo. O Porto tem uma força interior muito grande, como se nota. Foi a cidade portuguesa que mais cresceu no turismo, o Porto tem muita coisa boa. Há muitos locais do país que precisavam de ser ajudados... quando se fala em descentralização devia-se começar por aqui: descentralização de organismos, organizações e eventualmente ministérios, como acontece noutros países. E há regiões que precisamos de desenvolver de uma forma urgente, como é o caso do Alentejo, de algumas áreas da região centro, de Trás-os-Montes. É importante descentralizar, desenvolvermos o país mais além do que é Lisboa e Porto e isso não se resolve desta forma. Quem precisa de mais apoio não é o Porto, é o resto do país... se são questões técnicas que estão subjacentes a esta decisão é outra coisa, mas não me parece que tenha sido por isso que foi tomada.

Para além do desporto, que outros interesses é que tinha na infância? O 25 de Abril apanhou-o muito jovem. Já tinha queda para o associativismo político?

À política nunca estive ligado, nunca tive esse apelo. Ao associativismo fui estando sempre mais ou menos ligado. No secundário, de forma mais ligeira e depois quando entrei para Medicina estive ligado à Associação de Estudantes, depois à criação da Associação Nacional de Estudantes de Medicina...

Mas nunca teve filiação ideológica?

Nunca estive ligado a um partido político. Tenho tido essa isenção. Não tenho nada contra essa ligação, até porque a política é fundamental. Se calhar devíamos ter mais participação política, mas nunca calhou. Já tive alguns convites mas também não os aceitei, também porque não tenho tempo e neste momento tenho a vida ligada à medicina, que continuo a fazer. Continuo a fazer consulta no Hospital de São João à quinta-feira. Mantenho isso desde o início do mandato e espero que seja até ao fim. Não é fácil porque há coisas que não posso falhar.

Nunca falha uma consulta?

Se não puder ir numa quinta tenho de remarcar a consulta para outro dia. Ninguém me faz a consulta. Se me marcarem uma reunião a que não posso faltar, tenho de adiar ou antecipar, o que no São João não é fácil porque não há consultórios vagos. Mas isso aconteceu muito poucas vezes.

O ministro da Saúde é um teórico, estudou na Escola Nacional de Saúde Pública, fez o seu mestrado e doutoramento em áreas ligadas à saúde, mas não tem a experiência de ver doentes.

Uma crítica feita muitas vezes a dirigentes associativos e sindicalistas é ficarem ausentes do terreno. Fez sempre questão de manter o pé na sua profissão?

Fiz. O que é que acontece se eu deixar de ir ao hospital? Deixo de conhecer o hospital. Qual é a grande diferença entre o nosso ministro da Saúde e o bastonário da OM? Há logo duas grande diferenças: o ministro da Saúde é um teórico, estudou na Escola Nacional de Saúde Pública, fez o seu mestrado e doutoramento em áreas ligadas à saúde, mas não tem a experiência de ver doentes. Mais do que isso: visita pouco os hospitais e os centros de saúde, o que significa que não tem um contacto direto com as pessoas. O que é que eu faço? Para já continuo a ver doentes. Sei das falhas dos sistemas informáticos, nos blocos operatórios, o problema da falta de capacidade para fazer todos os exames... e vou-me apercebendo do funcionamento, que há aparelhos que estão completamente fora de prazo. Depois como visito muitos hospitais vou conhecendo a realidade do país. Dir-se-ia que na prática eu consigo perceber melhor as coisas. Não era possível fazer um debate entre alguém do Ministério da Saúde e o bastonário porque nas questões práticas eu conheço-as e eles não. Há outra coisa que é importante perceber. Dizer que hoje se opera mais doentes e que o SNS está melhor... não é o SNS que está melhor, é a medicina que está melhor. Relativamente ao SNS é outra história. Se perguntarmos aos profissionais que trabalharam nos últimos 15 anos se hoje estão mais satisfeitos por trabalhar no SNS do que estavam há 5 anos, tenho a certeza de que vão dizer que estão mais insatisfeitos. E porquê? Porque a pressão na medicina hoje é muito mais elevada do que há uns anos. Aliás, a velocidade a que são descobertos novos tratamentos é muito mais rápida. Além disso, os governos foram exigindo cada vez mais aos profissionais de saúde, mas não aumentaram a capacidade de resposta das unidades de saúde. O nosso ministro vem dizer "mas fazemos mais cirurgias". Claro que fazemos mais cirurgias, a medicina evoluiu de tal forma que as cirurgias hoje são mais rápidas e é preciso explicar isto. O dado absoluto não chega para explicar a falta de capacidade de resposta do SNS neste momento.

Dá a entender que o ministro não tem noção do que se passa no terreno...

Não diria que não tem noção. O que acho é que o ministro não ouve as pessoas. Vou dar exemplos em que eu tento estar presente junto dos médicos - e não é fácil, é desgastante, é como o Presidente da República que anda de um lado para o outro, mas a função obriga a isso. O problema do sarampo no Hospital de Santo António, no dia a seguir eu estava lá a falar com as pessoas. Quando foi o incêndio de Pedrógão eu na segunda-feira estava lá. Podia-lhe dar dezenas de exemplos. Isto é também o que nós temos de fazer: falar com as pessoas para elas sentirem que têm algum conforto e algum apoio. E tem faltado isso ao nosso ministro. Acho que ele devia... sei que a vida dele é mais ocupada do que a minha, mas devia tentar estar mais próximo das pessoas, ir aos locais, falar com médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, ouvir o testemunho direto mas não comprometido. Não é com os conselhos de administração, que esses vão sempre dizer o que se quer ouvir.

Acha que o ministro procura um campo confortável onde só ouve elogios?

Se ele for falar com as pessoas, as pessoas apreciam essa atitude. Ficam positivamente sensibilizadas se virem que o ministro vai ter com elas à urgência. E tem-lhe faltado um bocado isso. Acho que esta mudança de atitude de mostrar mais respeito pelas pessoas é muito importante. E só por isso as pessoas já ficam mais gratas, porque as pessoas gostam de trabalhar no SNS. Os mais velhos participam na formação dos mais jovens mas os mais novos também ajudam na formação médica contínua dos mais experientes - aliás, um serviço que não tem internos em formação está condenado a médio prazo a ficar completamente ultrapassado. Os internos têm uma importância vital em todo o sistema, por isso é que a medicina privada, que também já percebeu isso, quer passar a ter internatos médicos. As pessoas preferencialmente ficam no serviço público, mesmo tendo remunerações inferiores - sabemos que não podemos ganhar mais nesta situação de crise, embora eu ache que os sindicatos deviam pedir uma tabela salarial mais ajustada à responsabilidade civil dos profissionais de saúde.

Falou dos internos. Já faz parte da geração acima dos 55, tem sido falado o peso da faixa mais velha de médicos dentro do SNS. Como era ser interno na sua altura?

Eu quando concorri à especialidade, metade das pessoas não entraram. Isto é um mito que lançam na praça pública. Eu quando concorri, metade de nós teve acesso à especialidade, o número de vagas era perto de 800, e a outra metade não conseguiu entrar. Depois felizmente o número de candidatos foi reduzindo e foram aumentando as capacidades formativas. Repare que hoje o mapa de capacidades formativas teve 1720 vagas em dois concursos, é mais do dobro do mapa de vagas que eu tive na altura.

Um médico sem especialidade está tramado. Hoje para exercer medicina é preciso ter uma especialidade. A frustração é maior quando se queimam as pestanas, estuda-se bastante para entrar na faculdade, depois acaba o curso e não consegue entrar numa especialidade.

Acha que é importante reduzir os numerus clausus... mesmo criando alguma frustração nos jovens...

A maior frustração é... um médico sem especialidade está tramado. Hoje para exercer é preciso ter uma especialidade. A frustração é maior quando se queimam as pestanas, estuda-se bastante para entrar na faculdade, depois acaba o curso e não consegue entrar numa especialidade, é uma frustração enorme.

Participou em mais de 400 transplantes. Continua a manter essa atividade?

Continuo ligado aos transplantes, não de uma forma tão ampla como estava mas continuo a ter um fim de semana por mês, sexta, sábado e domingo, em que estou de chamada aos transplantes. Nesses fins de semana tenho de estar pelo Porto, não posso ir muito longe. A transplantação é de facto uma área nobre da medicina em Portugal, é provavelmente uma das áreas mais importantes da medicina e uma das áreas em que Portugal está verdadeiramente no topo. Isto é um motivo de orgulho para o país, uma área em que se veem resultados imediatos. É uma área compensadora em termos humanos.

Como foi suceder a José Manuel Silva, que tinha um papel muito ativo, quase sindical?

Temos de separar... o professor José Manuel Silva foi um excelente bastonário e lutou muito pela defesa dos doentes e dos médicos e teve um papel, nalgumas matérias, se calhar muito sindical.

Num período complicado, da troika...

A diferença entre o período da troika e agora não é grande. O problema é que quando existem alterações é difícil modificá-las. O problema foram as alterações introduzidas no período da troika. O nosso investimento na saúde, hoje, é mais ou menos semelhante em percentagem de PIB. As alterações que foram introduzidas no período da troika mantêm-se, especialmente se são favoráveis ao Estado. E depois é difícil voltar ao que era. José Manuel Silva teve uma intervenção muito ativa, como na greve dos médicos... nós tivemos mais greves num ano do que ele teve em seis anos. Quando existe a greve, a ordem deve apoiar as reivindicações se elas forem justas, apoiar os médicos, dar um sinal positivo no seu empenho na defesa dos doentes e dos próprios médicos, mas deve dar o papel aos sindicatos. Quem tem de ter a intervenção pública, quem tem de aparecer mais, estar nos hospitais, quem tem de comentar o que está a acontecer durante a greve são preferencialmente os sindicatos - não quer dizer que não devamos dizer alguma coisa, mas a Ordem deve ficar numa situação mais resguardada.

Tenho de pensar, primeiro, se faz sentido recandidatar-me. Ou seja, se após a conclusão deste mandato que está mais ou menos a meio, se tenho mais alguma coisa para oferecer ou não.

Vai manter-se mais três anos?

Não sei, é uma decisão que terei de tomar daqui a algum tempo. Tenho de pensar, primeiro, se faz sentido recandidatar-me. Ou seja, se após a conclusão deste mandato que está mais ou menos a meio, se tenho mais alguma coisa para oferecer ou não. Por um lado, tenho de fazer uma análise se o meu trabalho foi ou não positivo, se serviu para melhorar as coisas nalgumas áreas, nomeadamente na defesa dos direitos dos doentes e dos médicos, e depois disso tenho de pensar se em termos pessoais a minha vida me permite ou não que possa fazer mais um mandato. Ser bastonário da OM tem muitos fatores contra, normalmente não são muito falados. Mas, por exemplo, o tempo que a pessoa tem para pensar noutras coisas... é muito diferente de ser presidente de um conselho regional. Eu estou permanentemente a pensar na OM, tenho solicitações permanentes...

Ainda consegue ler um livro?

Consigo mas tenho de interromper muitas vezes. Agora vou ter uma semana de férias e vou estar mais descontraído. Vou tentar que o telefone esteja desligado e ao fim da tarde, pronto... são férias de praia. Quando chego ao hotel lá ligo o telemóvel para me inteirar do que está a acontecer no país e na saúde. Tem outras implicações, mesmo em termos financeiros. Eu sei que isto foi debatido, se o bastonário deve ou não deve ser remunerado, mas a verdade é que a OM é uma das raras ordens em que ninguém tem remunerações, o que significa que eu naquilo que é a minha atividade pública fico obviamente limitado porque tenho de meter dispensas... continuo ligado ao transplante mas de forma limitada. Obviamente que isso implica menos trabalho porque estou a prestar um serviço público e perde-se as horas extraordinárias, os incentivos. E depois no setor privado perde-se quase tudo. Não se tem tempo para trabalhar no setor privado. Fazia, antigamente, duas a três consultas por semana, agora se fizer uma a cada 15 dias é muito... e é mais para manter a chama, para dizer que continuo a ser médico.

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