Sociedade
03 junho 2023 às 22h12

O "Piloto de Casablanca", um herói português nos céus de África na II Guerra Mundial

No decorrer da Segunda Guerra Mundial, a ligação aérea entre Lisboa, Tânger e Casablanca era exclusivamente assegurada por Portugal, país neutro no conflito. O piloto que fazia esta viagem era José Cabral, então ao serviço da Aero Portuguesa, e uma figura notável da aviação naval nacional da primeira metade do século XX. José António Barreiros percorreu os caminhos pretéritos de Cabral, das beiras onde nasceu, aos palcos mundiais. Uma figura entretanto esquecida. A propósito do lançamento do livro O Piloto de Casablanca, conversámos com o autor.

Nascido em 1897, no lugar de Casal de Cima, no concelho de Mangualde, José Cabral contrariara a sua origem humilde, beirã, num percurso que lhe deu o mundo, da capital portuguesa, ao Reino Unido, entre outras paragens europeias, também com missões no Oriente, mais tarde no Norte de África, enredado nas beligerâncias do conflito mundial e, finalmente, nos Estados Unidos da América. José Cabral firmava contactos nos serviços britânicos e norte-americanos e teve um papel de relevo ao salvar da ameaça nazi refugiados de guerra. Também com José Cabral diplomatas e militares das forças Aliadas cumpriram missões na operação de desembarque no Norte de África, o princípio do fim do III Reich.

Ao homem galardoado com a mais alta distinção concedida pelos Estados Unidos a militares estrangeiros, a Legião de Mérito, sobreviria "o esquecimento no país onde nasceu". Um oblívio sublinhado nas palavras que abrem o mais recente livro de José António Barreiros, autor nascido em Malanje, Angola, em 1949, advogado criminalista, com interesse manifesto na guerra secreta em Portugal no período de 1939-1945, assunto que tem estudado e um campo fértil para alimentar uma obra literária onde se assinalam, entre outros, os títulos O Espião Alemão em Goa, Traição a Salazar, Sergueiew - Uma Agente Dupla em Lisboa, Leslie Howard - O 13.º Passageiro.

Mais recentemente, José António Barreiros juntou, como refere na introdução ao seu novo livro, "as pontas soltas de uma investigação sobre as redes da ofensiva secreta na Segunda Guerra Mundial com incidência em Portugal. Daí, começou a delinear-se o tema do que aqui trago: um piloto, um avião, um filme, uma produtora de cinema". Estava dado o mote ao livro O Piloto de Casablanca (edição Oficina do Livro), obra onde o autor entretece o retrato daquele que apelida "um herói português na II Guerra Mundial". Um homem e os seus feitos que, desde há alguns anos, espicaçava as intenções criativas do autor. Em fevereiro de 2021, escrevia José António Barreiros no site que alimenta de conteúdos em torno da guerra secreta em Portugal, o 24Land, sobre a curiosidade em torno de José Cabral: "a vontade de ir ao seu encontro e exumá-lo do pó do esquecimento".

"Esta figura surgiu nas memórias de alguém que estava oficialmente colocado na Embaixada Britânica em Lisboa com o posto de adido financeiro, mas que na verdade era um agente do MI6, um coordenador da rede de espionagem exterior britânica, o comandante Philip Johns, autor do livro Within Two Cloaks [obra de 1979]". O livro fazia referência a um piloto-aviador português que tinha sido recrutado para serviços especiais por um colaborador do autor", conta-nos José António Barreiros.

Havia, pois, que reconstituir uma vida, um percurso em quatro continentes, um encontro com memórias documentais que levou o autor a "reconstituir material que consegui recolher, entre outros, junto de arquivos portugueses, na Torre do Tombo, no Ministério dos Negócios Estrangeiros e também nos arquivos ingleses e documentos respeitantes à passagem de Cabral por Macau. Já com o livro pronto fui ao concelho onde nasceu José Cabral, para captar o ambiente. A origem deste homem é muito humilde, sem grande história", sublinha o autor que encontrou, naquela existência com berço no final do século XIX, similitude com a sua própria vida: "nasceu em 1897, tal como o meu pai, a 25 de março, como eu. Tal como eu, José Cabral também esteve em Macau, embora com 60 anos de diferença".

"As biografias são quase todas cruzamentos entre a nossa própria experiência e o que vemos da vida dos outros. É como se estivéssemos com a pessoa ao lado a acompanhar-lhe a história e a revermo-nos nessa história. É muito difícil objetivarmos. Há um autor que diz que "a biografia é um género que não pertence à história e sim à literatura"", substancia José António Barreiros.

Sobre a evocação de Casablanca - na época da narrativa sob protetorado francês em Marrocos -, no título do seu novo livro, José António Barreiros não esconde o fascínio pelo lugar e película que o ambienta, produzida pela Warner Brothers e realizada por Michael Curtiz. No filme de 1942, Richard Blaine, representado por Humphrey Bogart, e Ilsa Lund, interpretada por Ingrid Bergman, protagonizam uma das mais célebres cenas de despedida do cinema, com o "avião de Lisboa" como pano de fundo.

"O filme coincide com o momento da invasão do Norte de África, a Operação Torch, que marca a viragem para a derrota das forças militares do III Reich", refere José António Barreiros, e acrescenta que "num último momento tive algum escrúpulo em dar como certo que aquele avião, naquela cena final do filme, era o português. Agora, não há dúvida que, seguramente, o avião que ali se vê refere-se ao aparelho da linha de Lisboa e há dados na película, logo no começo, em que se fala nesse avião".

Sobre José Cabral, conta-nos o autor d´O Piloto de Casablanca: "Era um homem discreto. A história acabou por esquecê-lo. Tratava-se de um indivíduo com um sentido claro do dever e um grande patriotismo. Na sua vida mais privada era um bem-disposto, folgazão, um sedutor. Um homem do tempo em que a marinha tinha asas, como se costuma dizer". José Cabral casou duas vezes, primeiro com Adélia Silva, mais tarde com Edith Mary Hamilton Chapman, de ascendência escocesa. Teve um filho do primeiro casamento, dois do segundo.

Para acompanhar o percurso heroico de José Cabral há que lhe traçar a existência fora da sua terra natal. Em Lisboa, no início da década de 1910, iniciou José Cabral os seus estudos. Entraria para a Escola Naval em 1916 para aí desenvolver o percurso na Aviação Naval. Em 1924 José Cabral está em Lisboa, no Centro de Aviação Naval, como experimentador de aparelhos e instrutor. Revela perícia no domínio da acrobacia aérea. "Um tempo de aviação perigosíssima, havia inclusivamente a acrobacia aérea com aviões. José Cabral chega com estas acrobacias a chamar a atenção dos norte-americanos. Repare, pilotar um hidroavião em acrobacias era um feito. Os flutuadores retiravam-lhe equilíbrio e ele [José Cabral] conseguia domar o aparelho". A edição de 27 de março de 1925 do jornal Diário de Notícias classifica as acrobacias de José Cabral como "de cortar a respiração".

Antes de vermos o piloto envolvido nos voos regulares para o Norte de África, há que lhe traçar o percurso na Aviação Marítima a Oriente que o "tenta logo em 1923, quando revela a intenção de servir na Aviação Marítima de Macau. Cinco anos mais tarde ali seria colocado. No Oriente, é colocado no Centro de Aviação, na ilha de Taipa". Na época, a China vivia as tensões da luta que se tornaria em guerra civil entre as forças nacionalistas e comunistas. Naquele contexto beligerante o piloto português destaca-se em missões de salvamento. "Merecem ser destacadas as condecorações que recebe pelas operações de salvamento de pilotos franceses caídos na China. E, sobretudo, as condições mais do que precárias em que tudo aquilo acontecia, com aviões em más condições", destaca José António Barreiros.

"A aviação marítima é de grande coragem e com uma mortandade terrível. Os aviões eram muito insipientes, quer nos motores, quer nos instrumentos de navegação, malgrado os avanços introduzidos por Gago Coutinho. Os pilotos viajavam em "casquinhas", a sensação de perigo era constante, voavam a céu aberto, sobre o oceano. Quem visitar o Museu da Marinha e for ao Pavilhão das Galeotas ali encontrará um hidroavião, o Santa Cruz, aquele com que Gago Coutinho e Sacadura Cabral terminaram em 1922 o raid Lisboa-Rio de Janeiro, no quadro da comemoração do Centenário da Independência do Brasil. João Cabral, então com 25 anos, não suporia que seria o último piloto desta nave, em Macau, garantido o seu regresso a Portugal".

Em 1932, vamos encontrar José Cabral de regresso a Lisboa. Dois anos mais tarde, é nomeado subdiretor da Aeronáutica Naval, depois promovido a diretor. Em 1938, sairia da Aviação Naval, com o posto de capitão-tenente. O seu futuro próximo apresentar-lhe-ia novos desafios sobre os horizontes africanos. José Cabral obteria em França o brevet de voos comerciais. Foi o primeiro piloto português a recebê-lo. Nessa época, ingressa na Aero Portuguesa.

O livro de José António Barreiros é também a oportunidade de, a pretexto da história de José Cabral, acompanharmos uma época heroica da aviação portuguesa, enredando-a no contexto geoestratégico internacional: "A linha de Lisboa-Tânger-Casablanca só era possível porque Portugal era o único país autorizado a explorar essa rota e isso decorria da posição neutral que mantivemos na Segunda Guerra Mundial. Virá, como já referi, a revelar-se uma linha vital para o desembarque das forças Aliadas no Norte de África. José Cabral era claramente um anglófilo, casado com uma senhora britânica. O contexto histórico e político, aquela que foi a posição de Portugal na guerra, possibilitou esta situação. Como sabemos era uma neutralidade de permanente equilíbrio precário, mas funcionou".

"O mais interessante para mim é a circunstância de José Cabral, no início da sua ligação à Aero Portuguesa, andar em aviões sem condições, sem calços de travões, ao ponto do avião que está na capa do meu livro ser contratado pessoalmente pelo general Dwight Eisenhower. Quando uma figura daquela dimensão disponibiliza um avião como aquele à Aero Portuguesa, permite-nos perceber a importância que tiveram no esforço Aliado na Segunda Guerra Mundial".

Sobre a Aero Portuguesa detalha o autor d´O Piloto de Casablanca tratar-se de "uma das empresas que constituíram a génese da aviação comercial nacional. Muitas delas tinham pouco de portuguesas, pois com capital alemão por trás. Era uma companhia meramente privada, criada em 1934 pelo comandante Júdice de Vasconcelos. Mais tarde, o comendador Medeiros de Almeida toma posição na empresa. A companhia tinha, então, apenas uma rota, um avião e um piloto. Mais tarde seria integrada na TAP. Era uma companhia que viveu sempre do seu próprio dinheiro, nunca teve apoio financeiro do Estado".

A 20 de outubro de 1934, dá-se o primeiro voo da Aero Portuguesa ao abrir uma carreira bissemanal entre Lisboa-Tânger-Lisboa, com ligação aos voos da Air France para o Brasil e América do Sul. "Na companhia operaria o bimotor Lockheed CS-ADD, o avião lendário ao qual dedico este livro", salienta José António Barreiros.

Já com o conflito mundial em curso, José Cabral participa em missões secretas nos céus africanos. "Uma delas é ter transportado o correio diplomático britânico e americano e os agentes diplomáticos e militares responsáveis pela preparação do desembarque das forças aliadas no Norte de África. Por outro lado, participou em dezenas de viagens de evacuação de refugiado da Europa central que estavam no Norte de África, destinados a Inglaterra e, depois aos Estados Unidos. Cabral instalou no cockpit do avião uma câmara de filmar que fazia o levantamento dos comboios de navios aliados na zona da entrada do Mediterrâneo. Chegou a transportar barras de ouro escondidas no avião, o que, a meu ver, abre toda uma pista relacionada com uma rede de espionagem norte-americana instalada em Tânger. Não podemos descartar a ligação a operações secretas que envolveram o comandante britânico Ian Fleming, criador da personagem 007, precisamente nesse período e nessa vertente. Talvez tenha aqui material para um novo livro".

Na década de 1950, após colaborar por vários anos com a TWA, uma companhia aérea norte-americana, José Cabral é nomeado pelo governo português como funcionário da Casa de Portugal em Nova Iorque. "O nosso país travava então a guerra em África. A posição oficial portuguesa é difícil na medida em que estávamos isolados na cena internacional. Nas Nações Unidas, o grupo afro-asiático vota contra a posição portuguesa. Os Estados Unidos, apoiantes da campanha anticolonialista, alinham por este grupo. O grande esforço que José Cabral leva a cabo é o da valorização da presença portuguesa em África, alinhando na retórica do regime, embora de forma moderada. Nunca foi um homem do regime, embora tivesse ligações diretas a Salazar", refere José António Barreiros.

José Cabral "nunca teve ambições políticas. No livro, abordo levemente a relação entre ele e o general Humberto Delgado que não era fácil. Eram duas personalidades completamente diferentes. José Cabral era discreto, sem ambições políticas ao contrário de Delgado, nomeadamente a partir de 1958".

José Cabral morre em Nova Iorque a 24 de outubro de 1984. "Falece longe do seu país natal, sem qualquer menção. Foi difícil reconstituir a sua vida, porque saiu dos holofotes. Cumpriu a sua missão e abandonou o palco. É claramente um militar que cumpriu o seu dever e retirou-se", conclui José António Barreiros.

O Piloto de Casablanca
José António Barreiros
Oficina do Livro
224 páginas