Propriedade e capitalismo

O comunismo pretendeu criar um mundo sem propriedade privada, impondo o desapossamento por lei e pela força, tentando amputar a natureza humana de um sentimento de posse, de propriedade, como que desconhecendo a sua conaturalidade, como se esta ideia de ter, de lutar por ter, de querer ter, de ambicionar, não fosse tão natural quanto respirar - e por isso impossível de ser afastada por uma qualquer normativa estadual.

Nesse seu esforço, o contraste com o capitalismo era evidente, fácil de desenhar e de provar, porque do lado de cá do muro se celebrava e incentivava o oposto, construindo-se um modelo económico que partia precisamente dessa natural inclinação para a posse, para a ambição. A propriedade como que estruturou a sociedade capitalista, uma sociedade empreendedora, autónoma, dona do seu destino, engenhosa, em que quem não tinha queria ter, lutava por ter.
O colapso económico e cultural do comunismo fundou-se muito nessa fracassada tentativa de erradicar o sentido de propriedade. Não deixa por isso de ser irónico que seja o capitalismo, na sua evolução, na sua liberdade de empresa, a contribuir hoje, e de forma surpreendente para os mais distraídos, para um certo declínio da ambição por propriedade, para a mitigação dessa necessidade, vontade, de ter, de ter mais, de ter o que deixar aos filhos.

Não se trata de afirmar a morte do direito de propriedade, nem tão-pouco de identificar um movimento ideológico destinado a construir um amanhã que canta comunitarista, mas apenas de realçar que há um certo declínio cultural da noção de propriedade, e que é bastante acentuada pelo desenvolvimento do modelo ou da lógica do acesso em vez do modelo da posse: em vez de termos livros, podemos aceder a eles através de uma app, em vez de termos filmes, podemos aceder a eles através de um sistema de streaming, em vez de termos um carro, podemos aceder a qualquer carro em car sharing, em vez de termos álbuns de fotografias, despejamos tudo numa cloud - para dar quatro exemplos simples.

Toda esta evolução, que só foi possível no âmbito do comércio e do mercado livres - e que é muitas vezes descrita de forma caricatural a propósito da geração millennial, retratada como avessa a compromissos duradouros de posse e propriedade -, está a contribuir mais fortemente para a modelação do sentimento de propriedade do que décadas de intenso doutrinamento comunista.

E este movimento convoca-me, interpela-me, porque ele não será inconsequente. Se entendo que uma sociedade sem forte sentido de propriedade poderá seguramente ser mais flexível, viver até um modo de vida que me atrai e de que participo, não deixo de pensar que ela corre o risco de se tornar menos autónoma - uma sociedade sem nada a perder e que por isso desconhece o risco e o trabalho da propriedade.

Advogado

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