Os indígenas, segundo Vasco Pulido Valente
Chamou ao novo livro O Fundo da Gaveta porque nada mais tem para editar e estava perdido. Um regresso ao século XIX para explicar a contrarrevolução de 1823-1824 e o fracasso do radicalismo monárquico de 1864-1870. Dois ensaios onde trata por tu os protagonistas dessa história de Portugal
Vasco Pulido Valente lançou um livro novo, em que trata por tu o duque de Loulé, o marquês de Sá da Bandeira, e muitas outras figuras da política do século XIX, aqueles que os portugueses só conhecem de ver as placas com os nomes das ruas que os homenageiam. Confessa que é um volume "flagrantemente duvidoso" porque lhe faltam notas de investigação, mas os originais estavam perdidos e ao encontrá-los - o historiador Rui Ramos tinha uma cópia - pouco mais fez do que corrigir a pontuação.
Enfiado numa poltrona, cruza alternadamente as pernas e responde longamente a cada pergunta. Só há uma resposta curta, quando se questiona se acredita em Deus: "Não." Nem mais uma palavra sobre o assunto, preferindo acender um cigarro que tira de um dos três maços espalhados sobre a mesa ao lado.
A hospitalização devido a um problema neurológico foi o pior momento no balanço de uma vida. O melhor, esse é mais difícil de escolher. Talvez a vida política e... Mário Soares: "Adorava o Dr. Soares. Foi, talvez, a pessoa mais extraordinária que conheci em toda a minha vida e a única que verdadeiramente admirei." A propósito, diz, "dizia-me sempre que a coisa que mais o irritava era quando me referia aos portugueses como indígenas. Ficava muito irritado e era o que mais lhe custava engolir nas minhas crónicas." Não deixa de referir - enigmaticamente - que o "Dr. Soares foi um homem que me fez muito mal pessoalmente, mas teve a generosidade de me perdoar os favores que lhe fiz".
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Está pouco interessado sobre a política atual: "Só na medida em que é reveladora das personagens." Quanto às novas lideranças do PS e do PSD refere sobre António Costa e Rui Rio: "É muito mau, mas sem comparação com os anteriores. Estes senhores podem ser medíocres, mas têm sentido das responsabilidades. Não são parvos como eram aqueles dois." Que dois? Durão Barroso, "que lá foi para a Europa ser criado dos outros", e Santana Lopes, "que ficou cá e foi o desastre que se viu".
Não gosta que digam que vive no século XIX, nem se arrepende de nada: "Queria era ter-me dispersado menos, mas houve a tentação do jornalismo e só se escrevem livros de História com 20 anos de trabalho."
Sá Carneiro
"O Sá Carneiro não era um ideólogo, mas um grande político que percebeu ser necessário para a sobrevivência do país que a direita pudesse governar. Quanto à sua morte, acho que foi um acidente. O Sá Carneiro era uma pessoa que tomava riscos irresponsavelmente. Eu não me metia num avião que tivesse saído das oficinas ou se tivesse de esperar meia hora para estar reparado, iria num avião de carreira. Se não houvesse, metia-me num automóvel. Também nunca seria capaz de guiar como ele, com quem viajei centenas de quilómetros e vi que conduzia de uma maneira desaforada. Tomava riscos incríveis nas estradas estreitinhas do Dr. Salazar, com árvores dos dois lados a cada dez metros. Se nos estampássemos, batíamos nelas e estávamos mortos."
Cristiano Ronaldo
"Acho muito bem que Cristiano Ronaldo seja um herói português. É uma pessoa ultradisciplinada, muito talentosa e inteligente, portanto pode sê-lo. Não é apenas um futebolista, mas uma personagem que seria admirável se também estivesse a fazer uma outra coisa. Alguém que tem aquela concentração e dedicação no que está a fazer, se tivesse outro tipo de atividade seria também um herói. Não é porque joga muito bem futebol, para isso há mais gente, que é tão boa ou melhor do que ele, mas nunca chegarão a ser o Ronaldo. E dizem que não se deixa contaminar quando começa o jogo por nada do que está à sua volta. Se fosse um cirurgião, eu gostava de ser operado por ele."
MEC
"Ralhei muito com Miguel Esteves Cardoso por causa de um título na revista K. Era um título - "Marcello [Caetano] o maior" - tão irresponsável como ele próprio. Ponto final. É uma das pessoas mais irresponsáveis que conheci em toda a minha vida."
Álvaro Cunhal
"Fiz duas campanhas com Cunhal. Chamava-me de vez em quando para falar e, numa visita em que os metalúrgicos no Entroncamento se voltaram de costas para ele ostensivamente, disse-me: "É uma tristeza. Tínhamos esta gente toda e agora ninguém." Noutra vez, perguntou-me o que tinha achado do seu discurso em Avis. Respondi-lhe: Oh senhor doutor, não achei nada. Andei pelo meio das pessoas e toda a gente estava preocupada porque o senhor estava mais magro e não era como na televisão. Ninguém o ouviu, nem eu."
O Presidente
"Já disse tudo o que tinha a dizer sobre Marcelo Rebelo de Sousa. É um presidente implausível. No outro dia estava a vê-lo na televisão a abraçar um boneco do Campeonato do Mundo na Praça Vermelha de Moscovo. E pensei: um senhor de idade, com uma situação na vida, de fatinho e gravata, a abraçar um boneco na Praça Vermelha. Isto faz algum sentido? Claro que a seguir desmaiou. Em que espécie de história ou de situação política é possível imaginar um professor de Direito que tem quase 70 anos, e cabelos brancos, nisto? Nem sei se foi preparado. Isto não pode ser real, pensei."
Eça, Saramago e Antunes
"Eça de Queirós foi o homem que melhor compreendeu o estatuto de Portugal no mundo e a natureza da cultura portuguesa. Nunca quis viver em Portugal porque considerava-o um país subordinado e de uma cultura imitativa. Os Maias é o romance sobre a imitação, não sobre o destino ou o incesto. Ora a coisa imitada nunca é tão boa como a original, mas sempre de natureza inferior. Não escreve nada por acaso, nem as vírgulas, e é de uma precisão absoluta. Depois dele não houve escritor algum com a sua dimensão, nem Saramago ou Lobo Antunes. Coitados... Não vou classificá-los nem falar deles."
O Fundo da Gaveta, Vasco Pulido Valente (Editora D. Quixote. 231 páginas) É o mais recente volume de uma vasta bibliografia ensaística e cronística.