José Tolentino Mendonça: a voz que pregou ao Papa não é importante
Entrevista com o padre e poeta português, o novo bibliotecário e arquivista do Vaticano
Com a edição em italiano de Elogio da Sede, pergunto-lhe se sabe se o Papa já terá visto e lido o livro?
Bem, Elogio da sede começou por ser uma espécie audiolivro (risos), pois reúne as meditações que o Papa ouviu no retiro da Quaresma passada. Mas, sim. Enviei a edição do livro em italiano ao Papa Francisco e ele telefonou-me depois a agradecer, coisa que muito me comoveu.
Escreveu que a sede volta sempre; pelo que imagino, os exercícios espirituais não terão deixado o Papa saciado, até por acontecer num espaço determinado de tempo e do tempo litúrgico. Como pode um Papa, este Papa, alimentar essa vontade de beber?
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A metáfora da sede parece-me especialmente significativa para descrever a vida espiritual exatamente por isso: volta sempre, desinstala-nos continuamente, faz de nós caminhantes em busca de uma fonte. A fé não é um estado de autossuficiência, mas pelo contrário: é uma aguda e por vezes dramática consciência da nossa pobreza, da nossa escassez que nos atira em confiança para a escuta de Deus.
O Papa Francisco diz recorrentemente que um dos maiores perigos para a Igreja é a autorreferencialidade. Ele tem-nos desafiado a todos a tornarmo-nos sedentos, a vivermos com fome e sede de justiça, de misericórdia, de humanidade... E creio que este é um dos traços que tornam a sua figura tão marcante e inspiradora: percebermos rapidamente que ele faz da sua sede o seu tesouro. Onde é que o Papa alimenta e amplia essa sede? Não tenho dúvidas que a oração para ele é uma máquina de criar sede, mas também o é a leitura que ele faz dos sinais dos tempos ou a sua fidelidade à escuta dos pobres e das periferias.
O diálogo que se estabelece com o Papa é de alguém que escuta, que tem sede de ouvir?
É esse, de facto, o seu modo de atuar. Ele é um Papa que defende muito a prática da sinodalidade. Seja com os bispos. E, por exemplo, no sínodo da família, o primeiro pedido que ele fez aos bispos foi que falassem e discutissem abertamente todas as questões. Seja com os fiéis, a quem estimula a uma participação mais ativa. Seja com as periferias sociais e existenciais, cuja voz ele tem a solicitude por escutar e trazer para o centro da reflexão.
O que fica daqueles dias está agora registado no livro, que foi uma reflexão dirigida ao clero e à Igreja. Ao publicar os textos dos exercícios abriu a porta a que outros se aproximem da fonte bíblica e evangélica. Até que ponto faz falta a Igreja estar no mundo, embebida no mundo, sem replicar um discurso de "nós/eles"? É esse também o caminho proposto pelo Papa, que muitos de fora da Igreja acolhem de forma tão positiva?
Tenho uma amiga que tem uma livraria, que é completamente agnóstica, e que, há dias, me surpreendeu. "Quero dizer-te uma coisa" - disse-me ela. "O Papa Francisco é a única voz verdadeiramente humana que hoje se faz ouvir no mundo." Não há dúvida que o Papa Francisco é um grande mestre de humanidade, num tempo em que os mestres escasseiam. E é muito escutado também fora do espaço eclesial.
Como pode ter Deus sede das nossas sedes? Que caminho é esse que é proposto aos crentes? Porventura, não apenas aos crentes, mas a todos os "homens de boa vontade"?
Há um texto bíblico do profeta Joel que aparece citado por São Pedro no seu primeiro discurso, logo na manhã de Pentecostes. E diz o seguinte: "derramarei o meu Espírito sobre todos os povos, os seus filhos e filhas profetizarão, os jovens terão visões e os velhos terão sonhos". Deus tem sede da ousadia profética dos filhos e das filhas dos homens. Deus tem sede que os jovens construam novas visões que contrariem os caminhos sem saída do status quo dominante. Deus tem sede que os adultos e anciãos não se deixem vencer pelo pragmatismo ou pelo pessimismo, mas mantenham até ao fim uma capacidade de sonhar. Deus tem sede de tornar-nos cúmplices da sua sede.
Com os exercícios quaresmais, sente que, de algum modo, influenciou o Papa? Pelo menos, ele percebeu que poderia ter ali o futuro responsável da Biblioteca Vaticana...
Um retiro tem outra natureza, bem distante da lógica das influências. A voz que aqueles que fazem um retiro procuram não é certamente a do pregador. E mais. De uma forma despojada, nem é sequer a sua própria voz. A única voz importante é mesmo a de Deus que ressoa no silêncio do coração. Tudo o resto é acessório.
A nomeação de terça-feira passada sugere que o Papa descobriu em si algo mais que um padre-poeta, um homem da Cultura ao serviço da Igreja?
Eu estava convencido que fazia o retiro e voltava ao meu trabalho em Lisboa, de que gostava muito.
Já tem alguma ideia sobre o modo como a Biblioteca Vaticana e o Arquivo poderão ser lugares de maior partilha para bebermos da sua fonte documental?
O primeiro bibliotecário da Biblioteca apostólica foi Marcelo Cervini e entrou ao serviço em 1501. Eu serei o 48º bibliotecário. É uma longa e belíssima história de serviço à Igreja e à humanidade que, antes de tudo, tenho de conhecer melhor. No arquivo e biblioteca trabalham atualmente 95 colaboradores, que fazem um trabalho de qualidade, muito reconhecido. Aprenderei também com eles. Estou entusiasmado. Não nos faltará que fazer.