Enigma taiwanês

Se pensarmos em Taiwan em termos de área (menos de metade de Portugal) ou de população (pouco mais do dobro da portuguesa), é extraordinária a relevância que assume nas relações internacionais, como agora com a China a criticar a escala nos Estados Unidos de Tsai-ing Wen, a presidente taiwanesa, a caminho do Belize e da Guatemala, dois dos apoios diplomáticos que restam à ilha. Mesmo o PIB de Taiwan (três vezes e meio o de Portugal) não serve de explicação para tanto protagonismo internacional. Quando muito, parte do segredo poderá estar no peso atual da sua indústria tecnológica, pois a ilha produz 60% dos semicondutores a nível mundial (aqui deixa de ser possível qualquer comparação com Portugal) e 90% dos mais avançados, como ainda há dias salientava a revista The Economist.

Mas Taiwan, que desde 1949 escapa ao controlo da República Popular da China e formalmente ainda se chama República da China, costuma estar nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo também por razões mais emocionais. E isto de ambos os lados do estreito que separa a ilha do continente. Por um lado, a grande maioria dos habitantes da ilha orgulha-se da sociedade democrática que foi sendo edificada nas últimas décadas e o sentimento de estar a construir uma identidade própria é forte, como se pode perceber pela eleição e reeleição de Tsai em 2016 e em 2020, pois a atual presidente integra as fileiras do Partido Democrático Progressista (DPP), que é independentista mesmo que não assuma oficialmente o corte com a ideia de uma só China; por outro, em Pequim a ilha é vista como parte inalienável da China, mesmo que em 1949 se tenha tornado refúgio dos nacionalistas de Chiang Kai-shek, derrotados pelos comunistas de Mao Tsé-tung na guerra civil que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial e da ocupação japonesa.

E Xi Jinping, seja por palavras duras seja por exercícios militares ameaçadores em redor de Taiwan, já deixou bem claro que a reunificação terá de acontecer, mesmo que tenha de se recorrer à força. O presidente chinês ambiciona ficar na história como o líder que refez a unidade da mãe-pátria, depois de Deng Xiaoping ter negociado com o Reino Unido e Portugal nos anos 1990 a devolução de Hong Kong e Macau.

Em Taiwan, o futuro da ilha não é visto da mesma forma por todos, pois mesmo no DPP há quem se sinta tentado a arriscar uma declaração formal de independência, num desafio total à China. E o Kuomintang (KMT), o antigo partido de Chiang Kai-shek, divide-se entre aqueles que consideram possível uma reunificação negociada a médio-prazo e os que, pragmáticos perante a opinião pública do país, defendem simplesmente boas relações, mantendo-se o status quo.

Ora, se alguém simboliza essas boas relações entre os dois lados do estreito de Taiwan é Ma Ying-jeou, que foi presidente taiwanês entre 2008 e 2016, época em que se desenvolveram os laços económicos e era comum, graças às novas ligações aéreas diretas, ver grupos de turistas de Pequim a passear em Taipé, a capital da ilha. Nesses anos até foi possível a Taiwan ser admitido como observador na OMS, uma inédita participação no sistema das Nações Unidas desde que em 1971 os representantes da República da China foram substituídos pelos da República Popular da China. Durante os dois mandatos de Ma, deu-se mesmo uma trégua na chamada diplomacia do cheque, com Pequim e Taipé a suspender os esforços para tirar aliados diplomáticos ao outro lado. Havia então duas dezenas de países que reconheciam a República da China, agora são 14, depois da recente mudança das Honduras, que estabeleceu relações com a República Popular.

Ma visitou a China exatamente no momento em que Tsai foi à América Central para enviar um sinal aos aliados que permanecem. Os dois mais importantes são hoje o Paraguai e o Vaticano, mas o poder económico e político da China vai fazendo caminho. Para Taiwan a estratégia de resposta já não é a diplomacia do cheque (impossível dada a transparência democrática no país) mas sim o estreitar das relações informais com os países europeus, o Japão e os Estados Unidos. Estes últimos, apesar de desde 1979 reconhecerem Pequim e não Taipé, têm um velho compromisso de defesa com Taiwan e o presidente Joe Biden já o expressou várias vezes.

Pouco antes de Ma deixar a presidência houve um encontro histórico com Xi, em Singapura, mas com cada um na qualidade de líder partidário, uma espécie de cimeira KMT-PCC. Seria o ponto de partida para uma aproximação ainda maior se nas eleições seguintes a opção dos taiwaneses não tivesse sido pelo DPP. E desde o primeiro momento de Tsai na presidência deu-se uma forte degradação das relações, pois a líder taiwanesa considera que o destino da ilha é uma escolha que cabe apenas aos seus habitantes; e uma maioria hoje diz sentir-se taiwanesa e não chinesa, mesmo que etnicamente o seja, com uma história comum e com pormenores como o de em Taiwan se usar os caracteres clássicos que na China foram simplificados.

Mas se não é o tamanho, nem a população, nem o PIB e talvez nem sequer os semicondutores a explicação, o que torna realmente o futuro de Taiwan tema da atenção mundial? Primeiro que tudo o interesse geopolítico, que é evidente tanto para os Estados Unidos como para o Japão. Nenhum destes dois países se sentirá confortável com a ilha de novo sob controlo de uma China com ambição de superpotência. Em segundo lugar, é de destacar o simbolismo de uma população etnicamente chinesa ("as pessoas de ambos os lados do estreito são chinesas e ambos são descendentes dos imperadores Yan e Amarelo", afirmou Ma em Pequim, falando dos han e gerando polémica em Taiwan) viver em democracia e de forma próspera, muito além dos planos de Chiang em 1949, mas também nada em sintonia com Mao e herdeiros. Em terceiro, a importância de Taiwan para encerrar do ponto de vista de Pequim o legado do século das humilhações, que começou com a conquista de Hong Kong pelos britânicos e incluiu a colonização de Taiwan pelos japoneses. Explicações à parte, que o enigma taiwanês não se desfaça numa guerra que, mais ainda do que a na Ucrânia, se poderia tornar global.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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