Batalha sem precedentes
O Ministério Público acusa os skinheads de genocídio, na morte de Alcindo Monteiro. Prepara-se uma batalha jurídica sem precedentes, perante uma acusação que se estreia nos nossos tribunais
“Esta não é uma morte qualquer. Atinge cada um de nós porque é a dignidade humana e a civilização que são atingidas”. Palavras proferidas por D. Manuel Martins, bispo de Setúbal, em 16 de Junho de 1995, na missa de corpo presente do jovem de origem cabo-verdiana Alcindo Monteiro, a predizer a acusação, ontem, vinda a público no semanário "O Independente".
O semanário revela que o Ministério Público (MP) acusa os 19 arguidos de crime de genocídio (o que acontece pela primeira vez em Portugal), um de homicídio e dez de ofensas qualificadas.
Os acusados, cujas idades oscilam entre os 19 e os 26 anos, são skinheads. Na noite de 10 de Junho do ano passado provocaram uma onda de violência, agredindo vários negros e espancando até à morte o jovem cidadão português de origem cabo-verdiana.
João Nabais, advogado dos pais do falecido, considera correcta a acusação de genocídio, que prevê a pena mais grave. “O genocídio não ocorre apenas quando se mata milhões de judeus. Basta uma ofensa grave à integridade física ou moral do grupo que se pretende aniquilar. E o que eles fizeram foi abater tudo quanto lhes apareceu pela frente e fosse negro”, disse ao DN. “Nunca numa situação deste género se tinham reunido factos tão gravosos”. João Nabais vai introduzir um pedido cível para efeitos de indemnização e, embora não pormenorizasse, falou em “montantes consideráveis”.
O genocídio, previsto pelo artigo 239.º do Código Penal, que substitui o anterior artigo 189.º, mantém o mesmo tempo de prisão: 25 anos.
O processo de acusação do MP possui duas mil páginas e foi elaborado pela delegada Cristina Janeiro. O número de testemunhas arroladas pelo MP chega às 84 e são dezenas os exames médicos e as provas analisadas.
Não restam dúvidas de que se tratará de um julgamento sem precedentes e de dimensões consideráveis. “Vai ser duro. A acusação terá um papel particularmente interveniente”, sublinhou o advogado da família Monteiro.
Acusação não resiste
Miranda Boavida, advogado de defesa de três arguidos, não esperava esta acusação. “Mas não fiquei aterrorizado”, comentou ao DN. “O tribunal há-de acabar por fazer justiça”. Tem a certeza, porém, de que “vai acontecer uma grande batalha jurídica e, tanto quanto sei dos factos, a acusação de genocídio não vai resistir em julgamento”.
“Estranha”, é como José Falcão, da SOS Racismo, classifica a publicação da notícia. Em sua opinião, "O Independente" não deveria ter especificado que o MP propunha a prisão preventiva de seis dos arguidos que ainda não se encontram detidos, por “ser um convite à fuga”.
O único comentário negativo de José Falcão à notícia. A acusação formulada “é muito importante”, mas lamenta que só agora o MP “tenha decidido ser tão forte”. Quanto aos tribunais, acusa, “têm dado, até agora, impunidade à extrema-direita”.
Para o alto-comissário para as Minorias Étnicas, a acusação significa que “em Portugal já não há vontade para se banalizarem estas violências racistas”. José Leitão sublinhou que “a forma serena e madura” como a comunidade cabo-verdiana se comportou na altura é compensada. “Não permitiremos que no nosso país alguém seja vítima de crime racista sem que seja sancionado”.
Deverá ser publicado dentro de dias, no Diário da República, um projecto de lei, aprovado na Assembleia por unanimidade, do qual José Leitão foi o primeiro subscritor. O documento prevê que nos crimes de carácter racista se possam constituir como assistentes as associações de imigrantes, anti-racistas ou defensoras dos direitos do Homem.