06 janeiro 2004 às 16h17

Durão solidário com Sampaio

Sampaio recebeu telefonema de solidariedade do primeiro-ministro. O Presidente da República condenou ontem divulgação de segredos de justiça e garantiu que não deixará passar ofensas à sua pessoa
 

MARIA HENRIQUE ESPADA; NUNO SIMAS

O primeiro-ministro, Durão Barroso, manifestou ao Presidente da República toda a sua solidariedade na passada sexta-feira, no dia seguinte à notícia de que o nome de Jorge Sampaio figurava numa carta anónima anexa ao processo de pedofilia da Casa Pia, apurou o DN. Foi na quinta-feira, primeiro dia do ano, que o Jornal de Notícias deu a notícia e, no dia seguinte, o próprio Durão telefonou a Sampaio manifestando-lhe a sua solidariedade. Uma informação que levou a Procuradoria-Geral da República a garantir, em comunicado, que o Presidente 'não foi pronunciado por ninguém ouvido nos autos' do processo.

Ontem, à hora dos telejornais da noite, o Presidente Sampaio rompeu o silêncio e fez uma comunicação ao País em que defendeu que devem ser punidos, 'na sede e momento próprios' os que permitiram que fosse 'insultuosamente envolvido o Presidente da República' no processo Casa Pia .

Mas não foi só: deixou ainda um recado ao procurador-geral da República, Souto Moura, e fez um apelo ao 'sentido de cidadania' dos jornalistas e dos 'agentes da justiça', para que passem a actuar com 'contenção e reserva', face às frequentes violações do segredo de justiça. O Presidente da República reagiu assim à notícia que dava conta de uma carta anónima anexa ao processo Casa Pia acusando o próprio Jorge Sampaio, assim como o comissário europeu António Vitorino, de envolvimento em práticas pedófilas.

Quatro dias depois - a notícia do Jornal de Notícias é de dia 1 - e de muitas críticas públicas ao próprio facto de o procurador João Guerra ter anexado a carta ao processo, apesar de a ter considerado irrelevante, o Presidente decidiu reagir. Porque, justificou, 'foi a marcha do processo, ou, melhor dizendo, a sua ilegítima divulgação, que veio interferir com o Chefe de Estado e o respeito que lhe é devido'.

indirecta ao PGR. Numa curta declaração, Sampaio aludiu à notícia e à carta através da qual 'é insultuosamente envolvido o Presidente da República' e ao 'alarido mediático' a que deu lugar.

Sampaio afirma que se trata 'de crimes que terão de ser punidos, na sede e momento próprios, pois não é legítimo que o Chefe de Estado deixe passar em claro ofensas que têm as mais graves consequências no respeito e consideração' que lhe são devidas.

Feita a clarificação, ficou também um recado, ainda que discreto, ao procurador-geral da República, Souto Moura, que tutela o Ministério Público: o Presidente fez uma referência à 'indispensabilidade de serem emitidas instruções, por quem de direito, que, no estrito respeito da lei, evitem, no futuro, inúteis e sempre irreparáveis lesões do bom nome e reputações das pessoas'.

O Chefe de Estado alertou ainda para a necessidade de se avaliarem as provas 'por aquilo que elas valham', e não 'pelos erros procedimentais', sejam da defesa, da acusação ou de 'magistrados judiciais', isto é, de juízes.

Ainda assim, Sampaio acaba por considerar que, de tudo o que está em causa, o mais preocupante é a 'sistemática violação do segredo de justiça e a confrontação mediática dos vários operadores judiciários, a esgrimir razões e contra-razões, a propósito de tudo e nada que se relacione com o chamado processo Casa Pia'. Porque constituem um 'risco demasiado grave para o apuramento genuíno de responsabilidades', a que é preciso pôr cobro. Daí o referido apelo aos profissionais da comunicação social e aos agentes da justiça.

Ainda segundo apurou o DN, a carta anónima que citava o nome de Jorge Sampaio e António Vitorino incluía outros nomes de figuras públicas - mais de dez -, mas a maioria não era de dirigentes socialistas.

Bastonário dos advogados elogia

O bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, elogiou ontem o discurso do Presidente da República, qualificando-o como uma 'lição de cidadania'.

'Subscrevo integralmente as palavras do Presidente da República, que são uma lição de cidadania e que tornam mais visível o silêncio de outro', afirmou.

O líder da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considerou que a comunicação do Presidente 'fala por si' e que o seu apelo à contenção e reserva 'deve ser respeitado'.

'Era bom que todos os portugueses, de todas as áreas, principalmente as envolvidas neste caso, meditassem nas palavras do Presidente', disse à Lusa Alexandre Baptista Coelho.

Também o Sindicato dos Funcionários Judiciais se pronunciou, manifestando o seu apoio ao apelo de contenção que o Presidente da República dirigiu a jornalistas e agentes da justiça. Fernando Jorge, dirigente do sindicato, sustentou que tem havido 'leviandade' na divulgação do processo Casa Pia .

O QUE DISSE O PRESIDENTE

No ano que agora terminou, entendi ter pública intervenção nos temas do chamado processo da Casa Pia sempre que esteve em causa assegurar, como compete ao Presidente da República, o adequado funcionamento do Estado de Direito, sobretudo no que respeita aos direitos quer das vítimas, quer dos arguidos.

Não se tratou - e nem de outro modo poderia ser - de emitir quaisquer juízos sobre a culpa ou a inocência de quem quer que seja, ou de interferir, por qualquer forma, na marcha do processo.

Acontece é que foi a marcha do processo, ou, melhor dizendo, a sua ilegítima divulgação, que veio interferir com o Chefe do Estado e o respeito que lhe é devido.

E isto porque, no passado dia 1 de Janeiro, um jornal de referência, aliás o único que se publicava nesse dia, deu nota, com grande destaque, e em violação do segredo de justiça, da existência, no mesmo processo, de uma carta anónima, em que é insultuosamente envolvido o Presidente da República, com o alarido mediático a que a notícia veio a dar lugar.

Trata-se de crimes que terão de ser punidos, na sede e momento próprios, pois não é legítimo que o Chefe do Estado deixe passar em claro ofensas que têm as mais graves consequências no respeito e consideração que são devidas ao Presidente da República.

Mas a questão essencial, aqui e agora, no que respeita ao regular funcionamento das instituições que me compete garantir, não é, obviamente, a defesa da honra e reputação do Chefe do Estado; tão-pouco se trata da indispensabilidade de serem emitidas instruções, por quem de direito, que, no estrito respeito da lei, evitem, no futuro, inúteis e sempre irreparáveis lesões do bom nome e reputação das pessoas.

Decisivo para o Estado de Direito e para a enorme dívida que a comunidade tem para com as crianças da Casa Pia é, sim, que sejam criadas, de imediato, condições para que a acusação já proferida e as provas que a acompanhem possam vir a ser apreciadas por aquilo que elas valham - repito, por aquilo que elas valham -, e não pelos erros procedimentais, sejam da acusação, sejam da defesa, ou mesmo de magistrados judiciais.

E isto na medida em que tais erros, se enfraquecem a credibilidade técnica dos seus responsáveis, podem em nada interferir com a verdade ou a falsidade das culpas imputadas aos arguidos.

Ora a sistemática violação do segredo de justiça e a confrontação mediática dos vários operadores judiciários - actuem, ou não, com a respectiva veste institucional - a esgrimir razões e contra-razões, a propósito de tudo e nada que se relacione com o chamado processo da Casa Pia, são um risco demasiado grave para um apuramento genuíno de responsabilidades, que se impõe pôr-lhe cobro.

Por isso, mais do que proclamar a minha confiança no esforço que é exigido às autoridades judiciárias para que façam respeitar a lei e reprimir as suas violações, faço um apelo veemente ao sentido de cidadania dos profissionais da comunicação social e dos agentes da Justiça, para que passem a actuar com a maior contenção e a maior reserva, no estrito limite do dever de informar e de dar informação, e assim contribuam para que os tribunais possam fazer aquilo que só a eles compete - administrar Justiça.

É essa Justiça que devemos aos arguidos; e, sobretudo, às vítimas, para que, a reboque de habilidosas estratégias ou de irregularidades instrumentais, não lhes seja feita essa última e intolerável injúria que seria condenar inocentes ou absolver culpados. E isso, sim, importa tudo ao Estado de Direito que tenho o dever de garantir e sem o qual ficam em risco as instituições da República e o seu funcionamento.

Partidos apoiam mensagem presidencial aos portugueses

Os partidos políticos manifestaram ontem concordância com as palavras que o Presidente da República dirigiu ao País. Da esquerda à direita, o tom geral foi de aprovação à mensagem.

Vera Jardim, do PS, disse reagir 'com muito agrado' à comunicação do Chefe de Estado. Em conferência de imprensa realizada na sede do partido, o dirigente socialista considerou a mensagem 'muito oportuna, face ao que temos assistido nos últimos tempos'.

'Houve uma intenção clara de atentar contra o bom nome do Presidente', disse Vera Jardim, considerando que 'foi também posto em causa o bom nome do País'. O dirigente socialista referiu-se também ao envolvimento no processo Casa Pia do nome do líder do PS, Ferro Rodrigues - 'particularmente visado por notícias que veiculam calúnias grosseiras' -, exigindo 'a possibilidade de o secretário-geral se defender e processar quem o caluniou'.

Também o PSD se afirmou solidário com a mensagem de Jorge Sampaio, que considerou 'totalmente legítima'. Segundo Pedro Duarte, porta-voz dos sociais-democratas, o 'PSD subscreve completamente as palavras do Presidente da República', associando-se aos 'seus apelos às autoridades judiciais e à comunicação social para que haja serenidade' no âmbito do processo.

Já o CDS, pela voz do líder parlamentar Telmo Correia, manifestou 'concordância e respeito' pela 'natural indignação' de Sampaio.Sobre o facto de esta ser já a segunda mensagem de Belém sobre o caso Casa Pia , Telmo Correia disse esperar que esta 'seja ouvida e respeitada de forma mais efectiva'.

Pelo Bloco de Esquerda, Francisco Louçã afirmou à Lusa que o Chefe de Estado 'fez um alerta enérgico contra a incompetência processual e a instrumentalização da Justiça'. O líder parlamentar comunista, Bernardino Soares, sublinhou que a mensagem de Sampaio 'é compreensível', face às 'graves e preocupantes violações do segredo de justiça'.