04 maio 2010 às 21h25

Das conversões radicais à separação de Deus

Há cada vez mais pessoas a descobrir Deus na fase adulta ou a deixar a fé após um longo período de reflexão. Foi o que aconteceu na vida de Duarte, Flora, Pedro e Isabel. A poucos dias da visita do Papa a Portugal, o DN continua a falar-lhe de temas polémicos da Igreja.

RITA CARVALHO

Duarte diz que sentiu Deus dar-lhe mais uma oportunidade na vida e Flora, depois de conhecer a fé católica, aprendeu que para revolucionar o mundo tinha de começar por transformar o seu coração. Duas histórias de conversão radical que acorreram já na fase adulta, e partiram de raízes distintas: Duarte cresceu numa família católica e Flora em ambiente ateu. Mas há também muitas pessoas a fazer o percurso inverso. Isabel e Pedro até foram educados nos valores católicos mas acabaram por condenar Deus à sua "não existência"

Duarte Lucena, 57 anos

Uma segunda oportunidade na vida

Foi há mais de 15 anos, mas Duarte Lucena recorda o dia como se tivesse sido ontem. "Estava a morrer, doente, no hospital. Os médicos mandaram-me para casa, já pouco havia a fazer", conta, lembrando as marcas que uma vida de vícios lhe deixou no corpo. "Em casa, chorei o dia todo. Tinha dois filhos e estava completamente perdido. Virei-me para Deus e disse: se existes, salva-me, e eu prometo baptizar os meus filhos e dar-lhes uma educação cristã". Foi o primeiro passo em direcção a Deus. O resto, diz, não foram coincidências, "pois quem acredita em Deus sabe que essa é uma palavra pagã", mas, uma série de passos que resultaram numa conversão radical.

O ambiente familiar de Duarte sempre foi religioso. Filho de pai diplomata, recorda as orações em família e a educação cristã. "Mas várias circunstâncias me levaram a afastar", diz, focando-se numa, talvez a primeira, que o revoltou contra Deus. No dia do sacramento do crisma, pediu-lhe a cura do pai doente, mas este morreu um ano depois. Na juventude foi crescendo a "esquizofrenia espiritual", como lhe chama, e começou a "dispersar-me".

Do álcool passou ao jogo, à droga e a uma vida de sucesso material, onde não faltaram jacuzzis e limousines. Na Califórnia dirigiu uma sociedade financeira, e nunca nada lhe faltou, mas "vivia anestesiado numa grande mentira". Ao ponto de ter vida dupla: "De dia vestia o fato, à noite ia para o Casal Ventoso", recorda, dando graças a Deus pela volta que a vida deu e lamentando erros do passado.

No dia que saiu do hospital, Duarte assistiu à entrevista televisiva de uma prima psiquiatra, que falava de Deus. "Liguei-lhe e disse: vou morrer, mas gostava de conhecer Deus. Ela falou-me duma amiga que ia a um grupo de oração e eu fui". Madalena, agora ao seu lado, acrescenta pormenores à história de conversão e lembra o dia, meses mais tarde, em que conheceram Father Luke, um franciscano australiano de passagem pelo País. "Ele tinha o dom da cura, e quando me aproximei, parecia que caía um véu dentro de mim", conta, acrescentando que sentiu Deus a dar-lhe uma nova oportunidade e a "perdoar-lhe os pecados".

Flora Costa, 40 anos

De uma família ateia para o Opus Dei

A conversão foi tão radical que os amigos e familiares nem o reconheciam. "Achavam que estava maluco. Mas nunca mais toquei em nada. Comecei a rezar muito, a jejuar, e tudo se foi refazendo." Desde então, integrou vários grupos religiosos, dando testemunho e salientando a mudança que Deus operou na sua vida. "Vivia no céu, arrebatado pela pessoa de Deus", reconhece. Hoje, aos 57 anos, mantém-se um cristão activo. Mas a conversão, diz, não acaba nunca. "Aliás, ainda mal começou..."

A conversão de Flora Costa deu-se na faculdade e à margem de um contexto familiar que nada fazia antever o que estava para vir. "Nasci numa família de quatro irmãos. Nenhum foi baptizado ou recebeu qualquer formação religiosa. Deus era assunto proibido", recorda esta professora da Universidade Fernando Pessoa, sem mágoa. Aos 18 anos, foi convidada por uma vizinha para 15 dias de voluntariado social. "Aceitei e só três dias antes percebi que era uma actividade organizada pelo Opus Dei, instituição que eu, como toda a família, considerava uma seita tenebrosa". Como já se tinha comprometido, foi, mas quando voltou, garante sem exagero, não era a mesma pessoa.

"Quando se diz que a fé é um dom é mesmo real. Foi assim, sem procurar a Deus e um pouco deslocada do conjunto de pessoas com quem me encontrava, que Deus quis brincar a sério comigo", recorda, doze anos depois. "Foi muito simples: numa questão de segundos Deus mostrou-me, não sei a que parte do meu ser, a sua existência", descreve, consciente de que está descrever o indiscritível. "Foi como se uma inesperada porta se abrisse e alguém do outro lado me sorria. Para mim, professora universitária e investigadora, é um pouco confrangedor explicá-lo de forma tão simplória mas é a realidade", acrescenta. A verdade é que desse encontro saiu com um desejo imediato de aderir à fé católica, pois no seu coração, diz, havia uma "intuição inexplicável de que aquele Deus estava naquela Igreja".

O primeiro embate fez-se sentir junto da família, quando disse que se queria baptizar. "Caí no descrédito dos meus pais e irmãos, verdadeiramente tornei-me numa estranha para eles. Foi doloroso para todos mas eu já não podia negar a evidência", recorda. A aprendizagem feita num centro do Opus Dei, começou pela base: aprendeu a avé-Maria, o pai nosso, os mandamentos e os sacramentos.

A mudança foi radical, reconhece esta engenheira química. Mas a partir daí tudo se tornou mais simples e rico, diz. "Antes queria revolucionar o mundo - até estava na Amnistia Internacional - mas depois percebi que havia um ideal maior: revolucionar radicalmente o meu coração para revolucionar o mundo".

Flora Costa tinha a vida numa enorme agitação, e quando, uns tempos depois, um colega se confessou apaixonado por ela, sentiu um enorme abanão. "Não sei o que Deus quer de mim. Tens que me deixar ver primeiro", respondeu-lhe, consciente de que a sua vocação talvez não passasse pelo casamento. Sete meses após o baptismo, acabou por ser admitida no Opus Dei como numerária, membro que vive o celibato e, apesar de ter uma profissão, se dedica inteiramente a Deus. Quase 20 anos depois, e apesar das dificuldades do ser cristão, valeu a pena. "A alegria e segurança interiores ganhas com a consciência do amor de Deus e da filiação divina são o tesouro da minha vida. Não os troco por nada!"

Isabel Moreira, 34 anos

A despedida e a perda de Deus

Foi ao ler a passagem do livro "Os que sucumbem e os que se salvam", de Primo Levi, que Isabel Moreira se despediu de Deus. O episódio passa-se na fila para a câmara de gás de um campo de concentração. Em desespero, uns condenados rezam a implorar piedade divina. Mas há quem se recuse a fazê-lo por considerar absurdo que Deus faça depender a sua salvação de uma prece, condenando, pelo contrário, os outros que a ele não se dirigem. "Desatei a chorar quando li esta cena pois apenas materializou algo que já tinha percebido: o absurdo da existência de Deus", conta a jurista.

Criada numa família católica e formada num colégio feminino do Opus Dei, Isabel Moreira não guarda boas recordações desse tempo. "Deram-me a visão de um Deus castigador. Havia muita insistência no pecado e na culpa. E isso comprometeu o desenvolvimento da minha personalidade", recorda, salientando também as facetas positivas do Mira Rio: a exigência do ensino e as amizades construídas ao longo dos anos. "Para mim foi traumático. Saí com a ideia de Deus focada no pecado e no inferno."

Mas não foi do Deus que aí lhe foi apresentado que se despediu anos mais tarde. Pois, entretanto, ao ingressar na escola pública e nas Equipas de Jovens de Nossa Senhora conheceu católicos que lhe mostraram uma fé completamente diferente. "Era um Cristo pai, que é amor, e nos abraça independentemente do que sejamos. Fiquei tão deslumbrada com esta mensagem que nem pensei se queria acreditar. Eu queria era aquele Deus", recorda, recuando quase 20 anos. Continuou católica, fez acção social junto dos sem-abrigo e encontrou espaço para se questionar.

As dúvidas vieram com a reflexão interior e a leitura de outros autores e, ainda na faculdade, "conclui que Deus não nos criou, mas fomos nós que inventámos Deus". Foi uma descoberta sem crise e sem raiva. "Mas foi a maior perda da minha vida, pois deixou um vazio enorme", reconhece, espaçando as palavras mas falando em tom seguro e confiante.

"Foi um deserto. Mas depois descobri que não acreditar em Deus também nos fortalece. Hoje não preciso de um ser superior para distinguir o bem do mal", assegura, garantindo que Deus é a "palavra mais só" que existe. E a ideia da sua existência é tão absurda como a de "haver elefantes com bolas verdes a voar".

E hoje, se acreditasse em Deus, onde estaria? De certeza que não seria na Igreja Católica, assegura Isabel Moreira, uma feminista, defensora activa dos direitos dos homossexuais. "Nunca teria espaço aí...", diz.

Pedro Espírito Santo, 18 anos

Viver o mandamento da inquietação

Pedro Espírito Santo tem apenas 18 anos, mas o seu percurso espiritual dava para contar uma longa história. Educado num Colégio Salesiano, cresceu numa família cristã, onde a missa fazia parte da rotina semanal e os valores católicos foram incutidos desde cedo. "Fui catequista, fiz o crisma, e tinha uma posição de destaque na escola, era muito activo", conta, sorrindo, salientando que sempre teve um "conflito" com a expressão católico não praticante. "Acho que o caminho espiritual deve ser feito com honestidade e intensidade. Não percebo como se vive com passividade uma área tão importante da vida. Ou se hiberna a questão espiritual", diz este jovem que há meses recebeu da mão da Ministra da Educação o prémio dos melhores alunos do secundário.

Foi essa coerência interior que o levou a falar com o responsável do colégio na hora em que as dúvidas de fé falaram mais alto. "Comecei a reflectir sobre estas questões, a ler livros, e achei que tinha de aprofundar o assunto. O mais sincero era afastar-me", conta, sublinhando a compreensão de pais e professores. Pedro queria ver-se de fora, sair do ritualismo da religião para repensar a forma como perspectivava a teologia e a espiritualidade. Não foram tempos fáceis, reconhece, ainda mais para um jovem no 11º ano, mas foi um processo de auto-descoberta muito rico. Ao fim de uns tempos, "percebi que o facto de não ter fé não mudava a forma como perspectivava o mundo. E aprendi algumas justificações com que as pessoas olham para o transcendente".

Agora, no primeiro ano do curso de Direito, pratica o mandamento da inquietação. Pois nesta reflexão coloca todos os cenários. Mas o "assunto" não está definitivamente arrumado, garante, porque vive em "permanente reflexão". A curiosidade incutida pelos pais, que sempre o levaram a viajar, dá-lhe também para aprofundar o conhecimento das religiões.

Apesar de ter sido sempre crítico de algumas posições da Igreja Católica, como a organização da hierarquia ou o celibato dos padres, Pedro assegura que a sua separação de Deus não aconteceu "por achar que a instituição não está bem" mas porque começou a pensar no fenómeno religioso de outra forma. "Não me tornei um dissidente!"