Paul Preston: "Um rei pode perder lugar por incompetência"
Entrevista a Paul Preston, Historiador e Biógrafo do rei Juan Carlos.
Quando foi editado, em 2003, Juan Carlos, o Rei de Um Povo, da autoria de Paul Preston, tornou-se leitura obrigatória para todos os espanhóis. Historiadores e jornalistas dividiram-se quanto ao valor da obra do britânico. Para uns, a biografia não autorizada do monarca é sólida, mas politicamente correcta. Para outros, manchada por erros e interpretações discutíveis. Preston publicou ainda livros dedicados à figura de Franco e à Guerra Civil, dá aulas de Estudos Espanhóis na London School of Economics e já leccionou Relações Anglo-Hispânicas na Complutense de Madrid.
Faz sentido falar numa "monarquia do povo" em Espanha?
Uma monarquia que começa no último quarto do século XX é algo que, à partida, não deveria ter sucesso, ainda por cima com o patrocínio de um ditador. Imagine-se se o mesmo seria possível em Portugal, sob a égide de Spínola... Franco usou essa estratégia para proteger a ditadura e transferiu o seu poder directamente para Juan Carlos, pensando que este ficaria 'atado e bem atado'.
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Mas a reviravolta dá-se quando Juan Carlos abre caminho para as reformas e devolve a democracia ao povo espanhol: em 18 meses, até Julho de 1977, consegue ultrapassar os direitos ditatoriais que tinha herdado e dar uma legitimidade «democrática» à monarquia...
Algo nunca visto.
Dar à monarquia uma dimensão democrática parece uma contradição.
Mas foi isso que aconteceu em Espanha. A monarquia inglesa, por exemplo, existe com base na inércia, ascende-se ao trono porque se é filho de, neto de. Na monarquia constitucional de Espanha, Juan Carlos ganhou a sua legitimidade. Na altura do 23-F [golpe de Estado em 1981], o rei arrisca a vida para defender a Espanha democrática. Porta-se como bombeiro da democracia.
Passados 30 anos, o papel de 'bombeiro da democracia' não poderia ser desempenhado por outra figura igualmente neutral e respeitada, como um Presidente da República?
O Presidente da República de que os espanhóis poderiam dispor agora seria Aznar ou González. E estes não são assim tão neutrais. Em Espanha há muitas tensões, políticas e autonómicas. E o rei consegue estar acima delas.
O casamento do príncipe representa novo fôlego para esta monarquia ou pode enfraquecê-la?
É bom que Felipe tenha mulher e filhos, é uma boa contribuição para a continuidade da monarquia... O problema para os mais tradicionalistas, obviamente, coloca-se devido ao facto de Letizia não ter sangue real - mas esse argumento faria sentido há 300 anos.
Mas não se quebra assim a ideia de um direito divino de governo do povo, transmitido através do sangue e apenas acessível às famílias de linhagem nobre... que é no fundo a essência da monarquia?
No século XXI, ninguém pode acreditar ainda no direito divino de um rei... Juan Carlos teve de se mostrar à altura do seu papel, mas o que acontecerá quando morrer ou abdicar, ninguém sabe.
Estará Felipe à altura desse papel? Como vai conseguir legitimá-lo?
Há aqui uma contaminação entre esfera pública e privada curiosa, até porque este casamento é também - e acima de tudo - uma cerimónia de Estado. De qualquer forma, Felipe é um homem de talento e foi muito bem preparado para o papel, pode suceder tranquilamente ao seu pai. Apenas o tempo dirá se Letizia será ou não uma boa rainha. Os monarcas, como quaisquer outros profissionais, também podem perder o seu lugar por incompetência...