Meta da dívida pública de 2022 desliza, mas analistas dão benefício da dúvida

Dívida total voltou a subir no primeiro trimestre e atingiu 276 mil milhões de euros, o segundo maior valor absoluto de que há registo. Previsões do Conselho das Finanças e FMI para 2022 ultrapassadas. E ainda só vamos em março.

A dívida pública e privada de Portugal é uma das mais elevadas da Europa e começaram a surgir sinais de que o endividamento público pode estar outra vez a derrapar face às metas definidas pelo governo para este ano, na proposta de Orçamento do Estado (OE2022).

Os analistas que seguem a economia portuguesa estão cientes dos perigos, mas ainda dão o benefício da dúvida ao país, por assim dizer. Mas confirmam que o ambiente de juros definido pela política do Banco Central Europeu (BCE) contra a inflação vai atrapalhar a saída da crise.

Por exemplo, esta semana que passou, o Banco de Portugal (BdP) fez a atualização do endividamento das Administrações Públicas e concluiu que a dívida total consolidada que conta para Bruxelas (ótica do Tratado de Maastricht) voltou a subir no primeiro trimestre e atingiu 276 mil milhões de euros, que é como quem diz, o segundo maior valor absoluto de que há registo.

"Em março de 2022, a dívida pública, na ótica de Maastricht, aumentou 1,2 mil milhões de euros, para 276 mil milhões de euros", acréscimo que "refletiu, essencialmente, emissões de títulos de dívida no valor de 900 milhões de euros e o recebimento de uma nova tranche do empréstimo da Comissão Europeia (cerca de 500 mil milhões de euros) ao abrigo do instrumento europeu SURE", explica o BdP.

O máximo de sempre no stock de dívida imputado aos contribuintes foi atingido em junho do ano passado (277,5 mil milhões de euros) no decurso da luta contra os efeitos da pandemia.

Entre a primavera de 2020 (quando começou a propagação virulenta da covid-19) e o final do verão de 2021, a dívida pública aumentou sempre a um ritmo assinalável e bem acima da média dos últimos anos antes de aparecer a doença.

No primeiro trimestre do ano passado, o incremento foi mesmo superior a 8%, segundo os dados apurados pelo banco central nacional. E já tinha subido também mais de 8% em 2020 como um todo.

Agora, neste primeiro trimestre, a dívida sobe, ainda que ligeiramente (cerca de 0,25% em termos homólogos).

É pouco porque há um ano deu um salto significativo, como referido. Mas a situação não abona muito a favor da consolidação orçamental anunciada pelo governo e abraçada pelo novo ministro das Finanças, Fernando Medina.

Deslizes na dívida

A dívida deve ser vista à luz do crescimento da economia. E, dessa perspetiva, há perigos sérios e problemas no horizonte por causa da guerra, da inflação quase galopante e do que isso pode significar em termos de recessão futura.

Uma coisa é certa, as taxas de juro soberanas estão a subir (para contrariar os efeitos inflacionistas) e devem aumentar ainda mais, o que complica a tarefa e a estabilidade dos mais endividados. Como Portugal e outros tantos na Europa, e por esse mundo fora.

A meta do governo PS no OE2022 é chegar ao final deste ano com uma dívida equivalente a 120,7% do produto interno bruto (PIB). Mas aqueles 276 mil milhões de euros apurados pelo BdP até março já faz ultrapassar essa meta quando ainda faltam nove meses para o fecho das contas.

De acordo com o Conselho das Finanças Públicas (CFP), o PIB previsto para este ano rondará os 227,1 mil milhões de euros. Se assim for, o rácio da dívida está agora nos 121,5%. Já é mais do que estimou o próprio CFP em março, que apontou para 120,2%.

O mesmo acontece usando os pressupostos do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgados no Outlook de abril.

Para o FMI, o PIB nominal português pode cifrar-se em 226 mil milhões de euros este ano. Assim, o peso da dívida pública já estará nos 122,1%. Acima da projeção de 121,6% feita pelos economistas do Fundo a partir de Washington.

No entanto, os analistas que seguem a economia portuguesa, como alguns das agências de ratings, sinalizam ainda alguma tolerância na leitura dos números e dão um género de benefício da dúvida ao governo e à capacidade produtiva do país em 2022. Querem esperar para ver como vai correr a inflação. Isso ditará o caminho ascendente dos juros.

Se a inflação subir ainda mais do que até aqui, as taxas de juro vão ter de escalar mais depressa do que hoje se julga. Isso trará problemas acrescidos e pressões para cortar na despesa e/ou subir a receita aos muito endividados, como é o caso do Estado português (um dos mais endividados da zona euro e do mundo desenvolvido em percentagem do PIB).

Analistas dissecam o problema

Comecemos pelos mais críticos ou céticos, os peritos da Economist Intelligence Unit (EIU). A equipa que segue Portugal admite que o PS está comprometido com algumas reformas e com a consolidação orçamental. No entanto, considera a tarefa sinuosa.

"O Partido Socialista (PS) ganhou com maioria absoluta as eleições para o Parlamento a 30 de janeiro, um resultado que garantirá a estabilidade política durante os próximos quatro anos".

"Acreditamos que a prudência orçamental continuará a ser uma prioridade do governo, que procurará manter o défice orçamental e reduzir a dívida pública", refere a EIU.

No entanto, o rácio do endividamento público está perto dos 130% do PIB "um dos mais elevados da União Europeia". Além disso, "as características estruturais da economia atrasarão a recuperação em 2022, nomeadamente a dependência do turismo, o espaço orçamental limitado e a baixa produtividade da economia".

Mesmo sendo diretamente menos dependente da energia russa, Portugal tem exposição ao mercado global nos preços. Assim, a unidade de estudos do grupo The Economist alerta que " a invasão russa da Ucrânia levará ao aumento dos preços da energia, o que aumentará a inflação, já de si elevada [em abril já superou os 7%, segundo o INE], o que funcionará como um travão ao crescimento em 2022".

Se o PIB for menor do que se antecipa agora, o peso da dívida aumenta automaticamente.

Num estudo ontem divulgado, o grupo de estudos económicos do BPI toma nota de alguns pontos positivos que podem proteger as contas públicas dos embates da crise. "A postura orçamental prudente do governo, a almofada de liquidez [depósitos] e os reinvestimentos do BCE proporcionam conforto num ambiente incerto", assinalam.

No entanto, dizem que "as contas públicas enfrentarão vários desafios no futuro próximo, alguns deles relacionados com as novas medidas para combater os impactos negativos da guerra na Ucrânia para as famílias e empresas".

Entre os efeitos, os economistas do BPI destacam "a possível execução de garantias relacionadas com linhas de crédito covid-19, eventuais necessidades de financiamento adicional a algumas empresas públicas e possíveis novas medidas para conter o impacto do aumento dos custos energéticos".

Ainda assim, "há espaço para acomodar uma potencial derrapagem fiscal, uma vez que a economia está a mostrar uma forte dinâmica e a dívida pública aumentou comparativamente menos em 2020 do que em outros pares europeus".

Já os peritos que seguem a República na agência de ratings Moody's têm mais reservas. Observam que "o conflito militar na Ucrânia enfraqueceu as perspetivas económicas por via dos preços da energia, agora significativamente mais elevados, e do agravamento das restrições já existentes nas cadeias de abastecimento".

Reconhecem que "a retoma económica de Portugal tem sido acompanhada por um bom desempenho no mercado de emprego, com a taxa de desemprego no final do ano 2021 já de volta aos níveis pré-pandémicos" e níveis de poupança importantes no setor privado que podem ser libertados "à medida que o governo retira gradualmente os estímulos relacionados com o coronavírus". É a tese do Banco de Portugal.

A Moody's considera que "Portugal enfrenta um risco limitado de rutura no fornecimento de energia dada a sua baixa dependência do petróleo e gás russos, e o PIB do país voltará a níveis pré-pandémicos em 2022".

Ainda assim, "esperamos que as taxas de juro da zona euro subam face aos níveis atuais ultraleves em resposta à inflação elevada" e que isso possa "reforçar as margens de juro líquidas dos bancos nacionais".

No entanto, temos sempre a inflação e os juros a subir. Nesse cenário, a Moody's considera que "esses fatores corroem o poder de compra das famílias e as margens das empresas, exercendo uma pressão adicional sobre os setores atingidos pela pandemia, tais como a hotelaria e alojamento, o lazer e os transportes".

"Contudo, esperamos que os empréstimos não produtivos [onde está o malparado] aumentem apenas moderadamente" porque a economia deve manter força suficiente, esperam os economistas da Moody's, uma das quatro grandes empresas que avaliam a qualidade da dívida nacional.

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