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Desporto
04 abril 2021 às 07h00

"Queria ver Mourinho ou Guardiola campeões na Mongólia"

Paulo Jorge Silva já treinou clubes de futebol em dez países de quatro continentes. Viveu o caos político no Zimbabué, sofreu um choque cultural na Zâmbia e não se deu bem com a comida chinesa.

Paulo Jorge Silva, 48 anos, vai iniciar a segunda temporada no comando técnico do Deren, equipa que atua na I Liga da Mongólia, mas não é sobre os talentos emergentes nem sobre as variantes técnico-táticas do futebol mongol que o treinador português de 48 anos tem algo verdadeiramente aliciante para contar.

Ribatejano de gema, natural de Santarém, tem sido um verdadeiro globetrotter no mundo da bola, tendo já passado por dez países de quatro continentes. A saber: Alemanha, Inglaterra e Áustria (Europa), Costa Rica (América), Nigéria, Zimbabué e Zâmbia (África), China e Mongólia (China).

"Tenho um espírito aventureiro dentro de mim e gosto de novos desafios. Depois os convites aparecem e decido experimentar. Onde houver uma bola, digo sempre que sim", contou ao DN, já em esforço, uma vez que já era de madrugada na Mongólia. "Salto de um país para o outro pela experiência e para conhecer um futebol diferente do europeu. Queria ver Mourinho ou Guardiola serem campeões em África ou até mesmo na Mongólia. Gostava de os ver a treinar nestas circunstâncias", atirou, orgulhoso do trajeto que tem feito.

Curiosamente, na Mongólia o choque cultural nem foi muito grande quando comparado com o que viveu nos outros países. Diz ser bem tratado, inclusivamente quando lhe metem um prato de comida à frente. "A Mongólia para mim é Londres, onde também já vivi, porque tem tudo. Tem bifes, a comida tradicional deles, pratos tipo caldeiradas e utilizam sobretudo a vaca e o carneiro", explicou, ainda que já tenha provado uma comida que "nem é carne nem é peixe". "Ainda não sei bem o que é. Comi uma vez e detestei, são umas bolas tipo almôndegas que leva tudo lá dentro: carne, peixe... mas pergunto qual é o peixe e ninguém me sabe dizer", narrou, desconfiado.

O idioma é um problema, até na comunicação com os adjuntos e os jogadores, mas Paulo Jorge Silva vai-se desenrascando, à boa maneira de um português. "Dou vídeos de treinos meus ao meu adjunto mongol para ele perceber o que pretendo implementar. Tenho quatro jogadores que falam inglês e passam a mensagem para a equipa. O covid-19 até ajudou porque os meus jogadores são quase todos estudantes e por causa da pandemia ficaram sem ir à escola", explicou o técnico, que deverá declinar um convite para orientar a seleção da Mongólia, recentemente goleada por 0-14 pelo Japão.

O pior é o frio, que já o faz pensar num novo destino. "As temperaturas no inverno vão até aos -40º C. Nossa Senhora! Chegámos a treinar no exterior, mas agora está muito frio novamente e tivemos de voltar a treinar no pavilhão. Fui logo ao computador e enviei currículos para a Tailândia", revelou o treinador, também tentado em aventurar-se na Indonésia e no Irão.

Foi em África que Paulo Jorge Silva enfrentou os maiores choques culturais. Começou pela II Divisão da Nigéria, onde orientou o COD United em 2015, mas nem sempre podia treinar quando queria. "Tinha de esperar que um senhor levasse as cabras a comer a relva antes de começar a treinar no campo", recordou.

Seguiu-se o Zimbabué, um país ao qual gostava de voltar, "nem que seja só para dizer "olá"". Treinou o Dynamos, clube do controverso e autoritário presidente Robert Mugabe, entre 1987 e 2017. "Todos os dias tinha milhares de pessoas a ver os treinos, entre os quais uns 30 jornalistas, metade a escrever bem e outra metade a inventar histórias, porque eram do partido da oposição. Na Nigéria havia 200 pessoas a ver a bola e no Zimbabué o estádio tinha capacidade para 80 mil pessoas, mas nos jogos havia 200 mil, todos em cima uns dos outros", lembrou o treinador, que saiu do país após o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ter cortado apoios àquela nação africana. Na despedida, apesar de uma derrota, teve os adeptos a entoar cânticos com o seu nome.

Próxima paragem? Zâmbia, o país onde mais sofreu. "Perdi o primeiro jogo e até com latas de cerveja levei. Fui um bocadinho apertado", contou. Depois apareceram os resultados e... a magia negra: "Foi muito complicado. Algumas vezes os jogos eram adiados por três ou quatro horas porque o árbitro dizia que tinha visto uma nuvem num sonho. Outras vezes estávamos em viagem e o motorista recusava-se a passar por certos locais porque dizia que estavam assombrados. Para não falar dos balneários quando éramos a equipa visitante, cheios de urina e galinhas com as cabeças cortadas. Também havia a religião, os jogadores eram muçulmanos e muitas das vezes tinha de começar a segunda parte com nove porque dois precisavam de 20 ou 25 minutos para rezar."

Ainda na Zâmbia, onde orientou o Mufulira Wanderers, teve de adaptar os treinos para desabituar os jogadores de um vício enraizado. "O filho do presidente tinha de tocar sempre na bola. E o filho do presidente era o guarda-redes e já tinha 35 anos. Era complicado para mim. Mesmo em lançamentos laterais no ataque, os jogadores iam passando a bola para trás para que a jogada passasse pelos pés dele. O que é que eu fiz? Comecei a fazer treinos sem guarda-redes. Expliquei-lhes que tínhamos de atacar", reviveu, bem-disposto.

Em 2017 e 2018, Paulo Jorge Silva treinou o Xiapu e o Hongrun na China, país onde encontrou as pessoas mais distantes e uma gastronomia para a qual quis... distância. "A comida na China, para mim... esqueça! Tudo o que mexe vai para dentro do tacho. E além de ir para dentro do tacho, leva imenso picante. Nas duas primeiras semanas andei todos os dias à rasca do estômago. Tive de aprender a cozinhar em casa e tornei-me um cozinheiro top. Na China posso ir a um restaurante ou a um hotel de cinco estrelas e estar a comer rato. Estive numa cidade em que vendiam carne de cão, tinham o cão na montra e escolhíamos qual queríamos comer. Não consegui. Isso foi uma das coisas que me fez sair da China e ir para a Mongólia, porque estava farto de cozinhar em casa", afirmou, bem-humorado.

"No Zimbabué tinha um amigo português domo de uma churrasqueira e eu dizia que era frango da Guia. Mas não, era frango do Zimbabué. Lá e na Zâmbia não tive muitos problemas, mas também não ia comer àqueles restaurantes em que não sabemos de onde a comida vem", acrescentou o treinador, que não tem empresário e fez estágios com José Couceiro, Guilherme Farinha e Manuel Cajuda.

Apesar de todas as histórias, Paulo Jorge Silva tem perdido grande parte da infância do filho, pois saiu da casa onde moravam, na Alemanha, quando a criança tinha apenas um ano. "O futebol dá-me alegrias, dá-me muita coisa, mas... eu perco tudo. Tenho um filho que vi nascer, mas que quando tinha um ano saí de casa, na Alemanha, e já não o vi a começar a gatinhar, não o levei à escola e não o levei ao primeiro clube de futebol, porque ele tem sete anos e já joga", confessou, com a voz embargada.

Recentemente, perdeu o pai e não conseguiu vir a Portugal marcar presença no funeral. "A minha irmã diz-me que ainda não me caiu a ficha. Mas toda a minha família me tem apoiado", rematou o treinador, que em Portugal jogou com as camisolas de Académica de Santarém, Alvitejo, Pernes, Popular de Alcanhões, Faro e Benfica e Boliqueime e orientou os sub-16 do Caldas e do Sporting Encarnacense.

david.pereira@dn.pt