25 março 2018 às 00h24

O tetracampeão nacional de ralis que nunca foi piloto profissional

Natural de Arganil, Carlos Bica foi o primeiro português a conquistar quatro títulos consecutivos (1988 a 1991). E conciliou sempre o desporto automóvel com a construção civil

David Pereira

Num ano em que comemora 60 de vida e 30 da primeira vez que se sagrou campeão nacional de ralis, Carlos Bica há muito que deixou o automobilismo para trás das costas. Natural da Catedral dos Ralis, Arganil, foi viver ainda muito jovem para Almada, esteve mais de duas décadas no Algarve e voltou há pouco tempo para a zona da Grande Lisboa, onde trabalha atualmente numa empresa na área de venda a retalho.

"O meu dia-a-dia é trabalhar das 08.00 às 20.00. É uma área que dá muito trabalho, porque tem de se andar sempre em cima de tudo, por causa dos preços. É stressante, mas é bom, porque me sinto útil aos 60 anos. Faz-me lembrar um pouco os tempos das competições: stress, mas calmo", começou por contar o antigo piloto ao DN.

Apesar da comparação, o automobilista retirado em 1992 estabelece diferenças bem vincadas entre as duas atividades. "Correr era um sonho de criança. Ia ver o Rali de Portugal em Arganil e disse que queria fazer uma corrida daquelas. Corri nove ou dez e tive 16 anos de carreira", recordou o beirão, que antes de se estrear como piloto em 1980 foi navegador. "Sempre disse que preferia ser um bom navegador a um mau piloto", frisou.

Mas Carlos Bica foi tudo menos um mau piloto. Foi o primeiro português a vencer quatro títulos nacionais consecutivos... e fê-lo ao mesmo tempo que trabalhava. "Na parte final da carreira, perdia quase 200 dias por ano a preparar tudo. Era quase semiprofissional, mas trabalhava numa empresa de construção civil da minha família", vincou, sem saudades da competição automóvel.

"Sempre fui muito pragmático. Depois de me ter sagrado tetracampeão nacional disse que ou ia lá para fora ou deixava de correr. Como não arranjei budget, nunca mais fiz uma corrida oficial. Cada coisa tem o timing certo. Fui viver para o Algarve durante 22 anos para fugir dos ambientes das corridas. Um piloto do meu tempo, Joaquim Moutinho, disse-me para não comprar jornais, para não ter saudades", afirmou Carlos Bica, que depois de ter deixado os volantes esteve ainda na primeira direção da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting e foi diretor desportivo da Fiat.

"Sinto que deixei uma pegada"

Para Carlos Bica, "o maior prazer" que a carreira lhe deu "foi cumprir o sonho de ser piloto de ralis". "Em 1990, fui piloto semioficial da equipa Lancia", recordou.

Porém, as melhores recordações são "as vitórias e os campeonatos", nomeadamente os quatro títulos nacionais consecutivos entre 1988 e 1991. "Fui o primeiro português a consegui-lo, e isso marca a história das pessoas, como o Joaquim Agostinho no ciclismo. A minha marca é essa. Sinto que deixei uma pegada", confessou o antigo piloto, entretanto igualado por Armindo Araújo (2003 a 2006). "Fiquei muito contente quando ele conseguiu igualar o meu recorde", frisou, orgulhoso do sucessor.

Por outro lado, ainda que lhe custe admitir, existe a mágoa de não ter conseguido exercer a sua profissão a nível internacional. "Evidentemente que tive pena. Tive para ser piloto oficial ou semi-oficial da Lancia, mas a administração não queria um português e procurou franceses ou espanhóis com as mesmas potencialidades. Em Portugal valoriza-se pouco o que é nosso", lamentou.

Exposição na Câmara de Arganil

Para surpresa do próprio, foi inaugurada no dia 10 uma exposição denominada Recordações dos Ralis do Carlos Bica, no átrio da Câmara Municipal de Arganil.

"É uma exposição temporária, que deverá estar nos Paços do Concelho até ao final do mês. Foi tudo programado entre o presidente da Câmara [Luís Paulo Costa] e a minha mulher. Completei 60 anos no dia 6 e os meus filhos quiseram que fôssemos todos passar o fim de semana a Arganil. Quando lá cheguei, tive aquela surpresa, com 150 pessoas à minha espera e a exposição. Pensava que ia apenas passar o fim de semana com a família. A minha mulher pensa que estas coisas devem ser com as pessoas vivas", explicou o antigo piloto, que encontra "diferenças abismais" na modalidade entre os primórdios da sua carreira e a atualidade.

"No meu tempo, éramos todos amadores. Os carros que utilizávamos para treinar eram os do dia-a-dia e os mecânicos eram amigos nossos. Quando acabei é que começou o profissionalismo. Hoje, os pilotos só vivem dos ralis, enquanto nós tínhamos de trabalhar. E em relação aos carros também existe uma diferença abismal. Antes era tudo mecânico, hoje é quase tudo eletrónico", constatou.

O que também mudou durante todos estes anos foi o Rali de Portugal, que já não passa em Arganil. "Custa-me, mas compreendo a organização da FIA, que considera que passar por Arganil fica fora de mão, pois as outras etapas são longe", analisou, explicando porque a sua terra é apelidada de Catedral dos Ralis. "O primeiro evento que me lembro e que marcou muito a zona de Arganil era uma etapa do Rali Londres-México. Quando os pilotos chegavam ao México diziam que a parte mais difícil tinha sido em Arganil. Havia uma mística diferente. Há muitas histórias que marcaram as pessoas. Quando eu ia ao estrangeiro e dizia que era de Arganil, outros pilotos diziam que eu era da Catedral. Com 10 e 11 anos, eu já lá andava a fazer classificativas", relembrou.