O pioneiro que foi ao Dakar com uma moto emprestada e acordou no avião ambulância
No dia em que arranca a 44.ª edição do Dakar, António Lopes, o primeiro motard português a participar, lembra como em 1991-92 foi "às escuras" para África, com apenas um bilhete e avião no bolso para regressar caso se perdesse.
Há trinta anos, o motard António Lopes ousou participar no então Paris-Tripoli-Dakar. Foi com uma moto emprestada pela Honda, caiu e foi obrigado a abandonar, apesar de não ter um arranhão, e não voltou porque era perigoso demais. Mas o caminho ficou aberto para os que se seguiram. De ano para ano, a participação portuguesa ganhou estatuto e sonha com um triunfo. Será este ano? A 14 de janeiro se saberá, mas o antigo piloto acredita que pode acontecer. A armada lusa na 44.ª edição do Dakar, que hoje vai para as dunas da Arábia Saudita, é liderada por Joaquim Rodrigues Jr. (Hero).
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"Foi uma aventura de uma vida. Ninguém sabia como era. Só sabíamos o que líamos nas revistas e jornais, dizer que fui às escuras é pouco", contou ao DN o antigo piloto, que a 29 de dezembro de 1991 foi para o rali com uma moto emprestada pela Honda, equipa que o conhecia das provas de todo o terreno.
Era campeão nacional de Enduro e já tinha vencido a Baja Portalegre e participado no Rali dos Faraós. "A moto sobrou do ano anterior, estava quase preparada e só teve de ser afinada. Na altura começavam a aparecer patrocinadores e consegui o dinheiro que era preciso, 12 mil contos (cerca de 60 mil euros)", conta, lembrando que hoje o valor da inscrição é muito inferior, e consegue-se fazer um Dakar com 7/8 mil.
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Era a primeira vez que um motard português participava. As motos pesavam 300 kg (hoje pesam metade), tinham quase dois metros de altura e era difícil manobrá-las nas dunas. Não havia o moderníssimo road book nem GPS. "Havia uma bússola eletrónica, que ajudava quem soubesse como funcionava. Eu só a recebi dois dias antes quando cheguei a França. Deram-me um lamiré de como funcionava mas não me serviu para quase nada", confessou o agora dono de um stand da Honda em Mem Martins.
Iam para as etapas com um mapa e um bilhete de avião. Caso se perdessem "bastava" ir a um aeroporto qualquer em África para chegarem a Dakar ou Paris. Se a moto avariasse e não desse para arranjar ficava lá. Não havia camião vassoura e ninguém os ia buscar: "Estávamos por nossa conta e essa é a grande diferença para hoje, e por isso os saudosistas dizem que essa era a aventura a sério. É dessa altura que vem a expressão, "se chegar ao fim já é uma grande vitória". Porque era mesmo."

A queda sem um arranhão para contar a história
"A coisa até estava a correr bem". Ia em primeiro da classe maratona e em 20.º da geral, mas uma queda na 12.ª etapa, no Mali, deitou tudo a perder. Ficou inconsciente e o piloto que o socorreu acionou o emissor de rádio que enviava o apoio médico (helicóptero) e excluía o piloto acidentado da prova: "Foi frustrante." Não se magoou, nem um arranhão para contar a história: "Acordei num avião ambulância e por mim tinha continuado, mas as regras eram assim e eu estava fora."
Tirando a parte de acordar num avião ambulância, a maior aventura foi participar num segredo que envolveu uma morte. O ambiente era tenso, a Guerra do Golfo tinha começado em agosto de 1990, e um soldado africano acabou por matar um dos concorrentes no Mali. A versão oficial é que Cabannes foi atingido por uma bala perdida. Esse seria aliás o início dos problemas que levariam o Dakar a sair de África e ir para a América do Sul e depois para o Médio Oriente.
António não voltou. Tinha cumprido o sonho e para ele "bastava". Sabia que ganhar era impossível e não estava disposto "a correr riscos tão grandes só para participar". Bastou-lhe abrir o caminho e hoje acredita que "há condições" para haver um vencedor português. "Devemos ser o país com mais participantes per capita nas motos. Temos sempre uma boa representação. E mesmo não tendo portugueses nas candidatas Honda e KTM, se um português ganhar não será surpresa", disse, lembrando que Paulo Gonçalves foi o que esteve mais perto de vencer antes de perder a vida na edição de 2020 e "deixar uma grande vazio".
A armada lusa deste ano é liderada por Joaquim Rodrigues Jr. (Hero) e ainda Rui Gonçalves, António Maio, Mário Patrão, Alexandre Azinhais, Arcélio Couto e Paulo Oliveira (corre com a bandeira de moçambique). Além dos sete das motos, há quatro em automóveis - Felipe Palmeiro, navegador de Benediktas Vanagas, Paulo Fiúza, navegador de Vaidotas Zala, e a dupla Miguel Barbosa/Pedro Velosa -, quatro em veículos ligeiros (Rui Carneiro/Filipe Serra e Mário Franco/Rui Franco) e outros quatro em SSV (Luís Portela de Morais/David Megre e Rui Oliveira/Fausto Mota).
O vencedor de 2021 pela Honda (gerida pelo português Ruben Faria), Kevin Benavides, mudou-se para a KTM e promete um novo capítulo da rivalidade entre as equipas dos vencedores dos últimos cinco anos. Terá a companhia dos também campeões Sam Sunderland,Toby Price e Mathias Walkner e lutará contra os ex-colegas Ricky Brabec, Barreda e Quintanilla. Destaque ainda para Carlos Checa e Petrucci entre os 50 estreantes nas duas rodas.

As sauditas e o controverso carro elétrico da Audi pilotado por campeões
De ano para ano a participação feminina bate recordes no Dakar. Este ano são 60, o triplo de 2019 por exemplo. Laia Sanz abandonou as duas rodas e vai competir nos carros (Mini). A espanhola tem um dos recordes mais impressionantes da prova - concluiu todas as etapas durante 11 anos seguidos -, mas este ano todos os olhares estarão postos nas duas sauditas que Riad autorizou a participar.
Dania Akeel (33 anos) será uma das duas primeiras mulheres da monarquia islâmica a assumir o volante e espera que as outras mulheres não olhem para o resultado, mas para o facto de ela fazer o que gosta num país onde os direitos das mulheres não é reconhecido. "Posso fracassar, mas também posso ter sucesso", disse Akeel, que participa na classe dos veículos ligeiros, tal como a outra saudita, Mashael Al Obaidan.
Reduzidas a seis dezenas entre mais de mil participantes, esta é também a primeira vez na que uma equipa feminina participa - Merce Marti e Margot Llobera. A relação das mulheres com o Dakar remonta à primeira edição do Paris-Algeri-Dakar, em 1979. Participaram sete motards. Martine De Cortanze ficou em 19º lugar - o ranking era único para carros, motos e caminhões. Jutta Kleinschimdt foi a única mulher a triunfar no Dakar (em 2001 ao volante de um Mitsubishi Pajero).
No ano de estreia dos carros elétricos no Dakar, Sébastian Loeb, Stéphane Peterhansel e Carlos Sainz são as grandes figuras da 44.ª edição. Mas se a Mini ganhou os últimos dois ralis, há que contar sempre com Nasser Al-Attiyah (Toyota), apostado em ganhar pela quarta vez... se tiver menos furos do que é habitual - 80 (!) em duas edições.
Se em 1981 o Audi quattro revolucionou a competição, contribuindo com a tração permanente nas quatro rodas, agora o fabricante alemão está de volta com o controverso 671-HP Audi RS Q e-tron, que combina uma transmissão elétrica com uma bateria de alta-voltagem e um conversor de energia altamente eficiente. Será colocado à prova pelos titulados Stéphane Peterhansel (14 vitórias) e Carlos Sainz (três) e ainda Ekstrom.
isaura.almeida@dn.pt
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