14 maio 2017 às 02h40

"Num país campeão europeu os árbitros não deviam ter necessidade de proteção"

Duarte Gomes deixou a atividade de árbitro no final de 2015. Foram 18 anos na primeira categoria, tendo atingido o estatuto de internacional. Apesar de estar longe dos relvados, este madeirense de 44 anos tem sido um dos impulsionadores do videoárbitro, tendo participado nos testes realizados em Portugal. Orgulha-se de tentar sensibilizar a opinião pública para a difícil tarefa dos árbitros de futebol e explica ao DN os novos desafios que se vão colocar à classe já na próxima época

Carlos Nogueira

Já se retirou há um ano e meio. Em tão pouco tempo encontra diferenças na forma como se analisa o papel dos árbitros de futebol em Portugal?

Encontro diferenças sobretudo devido aos comentadores que já estiveram ligados à arbitragem, pois há um conjunto de pessoas, sobretudo ex-árbitros, que têm tido um papel mais construtivo e que, nesse sentido, ajudam a justificar e a esclarecer o motivo das falhas que sempre acontecem num jogo de futebol. O que é importante porque as situações dúbias são repetidas até à exaustão pelas televisões, fazendo que o escrutínio sobre os árbitros seja cada vez maior, causando uma exposição implacável e muitas vezes injusta.

É por isso necessário adaptar a arbitragem aos tempos modernos?

Não há volta a dar em relação às novas tecnologias, pois cada vez mais as repetições serão mais sofisticadas e, como isto não irá mudar, temos de nos adaptar e avançar para os meios tecnológicos como auxiliares dos árbitros. Só assim podemos equiparar os meios do decisor àqueles que estão à disposição de quem está a ver o jogo em casa. E, neste sentido, as ações de sensibilização são importantes, não para escamotear o erro, mas sim para explicar por que razão ele acontece... se porque o árbitro estava mal colocado, encoberto, se estava atento a outra situação ou por qualquer outro fator. Se alguém falar pelos árbitros e as pessoas perceberem o seu lado, será mais um pequeno passo para a pacificação no futebol.

O que está na origem dessa falta de compreensão que levou a pressões, ameaças e agressões aos árbitros durante esta temporada?

Existe uma má cultura desportiva em Portugal, mas não é apenas esse o problema. As pessoas são muito intolerantes e consideram que, de uma forma geral, o adversário é um inimigo a abater. Tenho tido oportunidade de constatar isso nos distritais e nos jogos de jovens. Há ainda um protagonismo exagerado que é dado a quem não é jogador. Em Portugal, as pessoas dão audiências a programas de debate que contribuem para acentuar o clima de tensão no futebol.

E como se dá a volta a essa situação?

Considero que as estruturas dirigentes devem ser punidas exemplarmente, para que seja possível dissuadir determinados comportamentos. O Estado, por exemplo, tem apelado ao fair-play, mas não adotou medidas drásticas para evitar que passem impunes situações que até são do foro criminal. Por exemplo, há muita gente que não gosta de futebol, que usa as claques para ter comportamentos criminosos, aproveitando a impunidade vigente. Deve-se estancar esses comportamentos de imediato e de forma exemplar. Dou como exemplo o caso inglês, quando alguém disse à primeira-ministra Margaret Thatcher que havia um problema com os hooligans que podia matar o futebol. Aí o poder político atuou e acabou com o hooliganismo de tal forma que em Inglaterra não há jaulas para os adeptos visitantes nem vedações nas bancadas, pois a penalização dos infratores é forte e dissuasora. É algo desse género que deve ser aplicado em Portugal. Para se ter uma noção de como as punições são dissuasoras em Inglaterra, lembro que um jogador escreveu recentemente nas redes sociais que tinham ganho contra 14 e logo no dia seguinte foi punido com uma pesada multa. Por exemplo, em Portugal, se quem agredir um árbitro for preso, de certeza que isto vai parar...

Acha que a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga fizeram tudo para que não se atingisse este estado de coisas?

Houve uma altura em que não atuaram, tal como o poder político através da secretaria de Estado. Durante algum tempo foi estranho que a Federação e a Liga não tivessem tomado uma posição mais firme, mas as coisas mudaram e entretanto e já se reuniram com o secretário de Estado João Paulo Rebelo. E prefiro falar dessa atuação, porque é isso que é importante. Tomaram-se decisões importantes, como foi o reforço policial nos jogos da formação, o que representa uma vitória para os árbitros. E agora existe um compromisso conjunto da Liga e da Federação para levarem à Assembleia da República para que haja penalizações mais sérias. Só que existe uma situação que é preciso rever, pois no futebol são os clubes que aprovam a revisão dos regulamentos e normalmente não vão querer penalizar-se a si próprios... ainda assim fico satisfeito por ver alguns clubes a apresentarem um conjunto de medidas para resolver os problemas.

Como se sente um árbitro quando vê a sua família ter acompanhamento policial, como já se verificou esta época com Artur Soares Dias?

É algo muito triste. Não há o receio que haja de facto uma agressão, mas num país que é campeão europeu de futebol os árbitros de elite não deviam ter necessidade de proteção.

A APAF já anunciou que não iniciam a próxima época se os clubes não alterarem os regulamentos disciplinares. Concorda com essa medida?

Os árbitros têm a noção de que não podem impor um conjunto de regras. A paragem seria uma bomba atómica e apenas usada em último recurso, e considero que ainda não se chegou a esse ponto. A APAF fez um alerta, tal como a imprensa, sobre os problemas que foram acontecendo e isso criou um movimento de pressão para que um problema real fosse resolvido.

O videoárbitro que será introduzido na próxima época será a solução para todos os males?

Não é a solução para tudo. É essa a mensagem que tem sido passada, mas tendo em conta a ausência de cultura desportiva e de o escrutínio ser muito estreito, considero que é um mal menor. A introdução do videoárbitro é complexa e tem como objetivo retirar do futebol todos os erros claros e visíveis através da televisão. A verdade é que na maioria das vezes as situações são dúbias e, nesses casos, não há recurso ao videoárbitro. Isso só acontece quando se tratar de situações inequívocas... golos com a mão como os de Maradona ou Henry vão acabar.

Mas temos assistido a muitas situações em que os antigos árbitros não concordam sobre o mesmo lance...

No futebol não há verdades absolutas. Quando os árbitros não se entendem é porque o lance não é claro e, como tal, gera opiniões distintas. Nessas situações, o videoárbitro não intervém e, como tal, há lances polémicos que vão continuar a existir e continuarão a ser falados.

Isso quer dizer que a interferência do videoárbitro nos jogos será mínima?

Serão muito poucos os lances objeto do videoárbitro, até para não haver quebras da dinâmica do próprio jogo. Só será analisado o que é mais grosseiro e que influencia diretamente o resultado, como penáltis, cartões vermelhos diretos, trocas de identidade na amostragem de cartões, lances de fora de jogo que resultem em golo...

Concorda que irá gerar-se alguma confusão no início?

Tem de se explicar muito bem o protocolo do videoárbitro para que as pessoas percebam. Penso que durante o verão terá de haver uma divulgação aos jogadores, aos media e aos adeptos para que todos percebam bem este projeto.

Não há o risco de as críticas se virarem a partir de agora para o videoárbitro?

Tenho esse receio e vai, de certeza, haver alguém que não concorda, por isso quem vive da polémica pode estar tranquilo que vai continuar a ter matéria. Que se ponham a pau as mães dos videoárbitros. Vai haver quem queira saber quem é o videoárbitro nomeado para o seu jogo. O importante é que o videoárbitro tenha a mesma categoria do árbitro principal.

Com a sua experiência de ter participado nos primeiros testes, como é a articulação entre o juiz de campo e o videoárbitro?

Quando participei num conjunto de simulações desempenhando a função de videoárbitro, percebi a grande dificuldade da função. É muito mais difícil, por exemplo, do que a articulação com os auxiliares, que comunicam e trocam olhares entre eles durante o jogo. Estamos a falar de alguém que não está visível ao árbitro principal e que tem ao seu dispor um recurso exclusivo. Tem de se criar uma rotina e o timing ideal para que não surjam falhas. Nesse sentido, considero que seria importante que se formassem equipas para que essas rotinas fossem assimiladas mais rapidamente. O videoárbitro está numa posição privilegiada, mas tem de analisar com frieza os lances e decidir sob pressão, algo que requer formação e muito treino. Foi por isso que o International Board pediu dois anos para que o videoárbitro fosse introduzido.

A introdução do videoárbitro em Portugal foi repentina. Não há o risco de faltar essa rotina e mais treino?

É verdade que, por exemplo, no Mundial de clubes a experiência correu mal porque não havia rotina entre os árbitros. A nossa situação será diferente porque já houve testes off-line e durante o verão haverá oportunidade de se treinarem estas situações, pelo que estou convencido de que estaremos minimamente preparados.

Vão ser chamados ex-árbitros para desempenhar as funções de videoárbitro. Está disponível para regressar?

Nunca se sabe o futuro. Para já gosto daquilo que estou a fazer, que é tentar sensibilizar a opinião pública, ajudando assim a arbitragem. É algo em que estou focado, mas não descarto a possibilidade de regressar, porque uma vez árbitro, árbitro para toda a vida. Quero é ser útil ao futebol.

E está no seu horizonte exercer um cargo na Liga ou na Federação?

É algo que nunca esteve em cima da mesa. Posso dizer que tenho uma relação fantástica com o presidente da Federação [Fernando Gomes] e da Liga [Pedro Proença] e que não sou destrutivo, ou seja, não sou como alguns agentes que têm um discurso recalcado porque nunca fizeram a carreira que pretendiam. Estarei por isso sempre ao dispor para colaborar com a arbitragem e com o futebol.

Outra das medidas a implementar na próxima época é a divulgação dos relatórios dos árbitros. Concorda com essa decisão?

Concordo porque têm acusado a arbitragem de não ser transparente e de ser corporativa, algo que é normal pelos muitos ataques de que os árbitros são alvo de todos os lados. Neste momento, temos de acompanhar a evolução e, como tal, tornar as arbitragens mais transparentes, algo que é fundamental para o adepto. Considero que o benefício desta medida é maior que o risco e tiro o chapéu à Federação pela tomada desta decisão no contexto polémico que rodeia o futebol.

Os árbitros não ficam mais expostos?

Não. Vão exprimir exatamente tudo o que viram e é preciso que as pessoas tenham essa noção. Os árbitros não podem relatar o que não presenciaram como, por exemplo, o que se passa no túnel e que, nesse caso, é da competência dos delegados.