RUI FRIAS: A 'deserção' de Ronaldo
Éuma fraude, um impostor, um cordeiro em pele de lobo (…) Estamos a falar de Ronaldo (…) e Ronaldo foi AWOL." No país onde o soccer quase só é notícia pelo valor mediático de alguns jogadores, a imagem de Cristiano Ronaldo não poderia ter saído mais maltratada deste Mundial do que neste artigo do LA Times.
Portugal chegou à África do Sul como a selecção de Cristiano Ronaldo e saiu como a equipa de Eduardo. Uma boa notícia para a baliza da selecção e uma distinção mais do que justa para o excelente campeonato do guarda-redes - que ontem, a meio da tarde, já tinha levado mais de 24 mil pessoas a aderirem ao grupo "Aposto que depois deste Mundial o Eduardo fica com mais fãs que C. Ronaldo" no Facebook. Mas uma má imagem para Portugal.
Já sabíamos que "nem com Cristiano Ronaldo a mil à hora" a selecção nacional sairia da África do Sul como campeã do mundo. Avisara--nos José Mourinho antes da prova, mas desta vez não precisávamos sequer de profecias "especiais" para o perceber. Bastava olhar para o que tem sido a selecção com Carlos Queiroz e para o caminho tortuoso da qualificação. Sabíamos, isso sim, que Portugal chegaria mais longe quanto mais além fosse o capitão em campo.
Mas o mais além que CR foi não foi com os pés. Foi com a boca. A sua saliva por pouco não atingiu uma câmara de televisão, mas acertou em cheio na face de Carlos Queiroz quando, no final, remeteu para o seleccionador as explicações sobre o falhanço. A imagem com que Ronaldo saiu do Mundial não foi, por isso, nada higiénica. Muito menos digna de um capitão.
A frustração compreende-se. Quando uma selecção tem no ataque um dos melhores futebolistas do mundo e acaba por consagrar o seu guarda-redes, isso não pode ser bom sinal. É um plano falido. E, aí, as explicações cabem a Carlos Queiroz. Afinal, um treinador que consegue fazer com que o melhor jogador do mundo de 2008 pareça o mais banal dos futebolistas não pode sair disso sem responsabilidades. E o facto é que Queiroz não soube aproveitar Ronaldo.
O seleccionador arriscou um jogo perigoso neste Mundial. E ignorou a lição histórica de Lincoln: "Pode-se enganar toda a gente por algum tempo e algumas pessoas durante toda a vida. Mas não se pode enganar o mundo inteiro para sempre." Queiroz pensou que sim. Que poderia enganar os adversários todos neste Mundial. E isso, como a história dos Mundiais demonstra, é algo que só a Itália se pode propor a fazer de quando em vez. Portugal refugiou-se sempre na armadilha, utilizou a ratoeira como única arma de jogo, esperou que o adversário caísse na tentação - como caiu a frágil Coreia do Norte, na sua feliz ignorância - e deixou Cristiano Ronaldo entregue à sua sorte, lá na frente. Umas vezes com alguma companhia, outras completamente sozinho.
Como um jogo sem riscos é o mais arriscado dos planos, Portugal expôs-se ao fracasso. A uma bola perdida, a um ressalto imprevisto, ou até a um fora-de-jogo não assinalado, como o que acabou por dar a vitória à Espanha. E, conforme se temia, o plano de jogo de Carlos Queiroz foi ao fundo ao primeiro golo sofrido no Mundial. Porque era um plano que só contemplava metade da acção e ignorou a outra metade, aquela em que tem Cristiano Ronaldo, um dos melhores futebolistas do mundo.
Por isso, repito, a frustração de CR compreende-se. Um leão não pode sentir-se feliz numa jaula. A atitude, essa não pode aceitar-se. Sobretudo num capitão, como se apressou a apontar o seu antecessor, Luís Figo. Escrevia ontem aqui no DN Santiago Segurola, "nem Ronaldo se sente confiante na selecção, nem a selecção se sente confiante com Ronaldo. E isso é um grande problema". A partir deste Mundial, deixou de ser apenas um problema no relvado e passou a sê-lo também no balneário. O que exige soluções rápidas.
Afinal de contas, ser a equipa de Eduardo (do enorme Eduardo) não pode ser o melhor cartão-de-visita de Portugal. E Ronaldo não pode querer ficar na história da selecção como um AWOL - absent without order to leave, um desertor.
No fundo, basta uma inversão de papéis: a braçadeira assentaria bem a Eduardo, a bola fica melhor nos pés de Ronaldo. Temos seleccionador para isso?