13 junho 2018 às 22h12

Estava escrito que Ronaldo ia ser Ronaldo

Uma viagem pelos primeiros passos de Ronaldo no futebol Ronaldo. Estava escrito que teríamos um deus da bola entre nós

Ricardo J. Rodrigues
Ricardo J. Rodrigues

No princípio era a bola e da bola veio Ronaldo. Quando começou a jogar aos oito anos no Andorinha, ninguém podia imaginar que aquele miúdo franzino iria tornar-se imortal. E nem é preciso fazer muitas contas para perceber a dimensão da lenda. Cristiano tem cinco bolas de ouro, é o melhor marcador de sempre do Real Madrid, da Liga dos Campeões e da Seleção Portuguesa, marcou 654 golos em jogos oficiais, tem mais de 50 hat-tricks no currículo.

Se os feitos são extraordinários, mais extraordinária consegue ser a história de como aqui chegou. Hoje começa, muito provavelmente, o seu último Mundial. Ou, pelo menos, o derradeiro campeonato do mundo que o melhor jogador do planeta pode ganhar. Então, antes do capítulo final, voltamos ao início da conversa. Esta é a história dos sinais em que não tínhamos reparado, de uma espécie de profecia que se concretizou diante dos nossos olhos. De como estava escrito que teríamos um deus da bola entre nós.

Génesis

Sete. São esses os quilómetros que separam em linha reta a casa onde Ronaldo cresceu, no bairro de Santo António, o mais pobre do Funchal, do Largo da Achada, na Camacha. Ali, no que é hoje um grande jardim com um parque infantil, disputou-se o primeiro jogo de futebol alguma vez realizado em território português. Há até um monumento a assinalar o facto. Aconteceu em 1875, 110 anos antes de Cristiano nascer.

Nesse verão, Harry Carvelery Hinton decidira trazer de Inglaterra uma novidade. O rapaz, então com 18 anos, definia-se madeirense por inteiro, mas estudava em Londres. Tinha nascido no Funchal e era herdeiro de uma família que dominava o comércio da banana. O pai enviara-o para a Velha Albion para aprender finanças, Harry parecia ter jeito para os negócios. De facto, anos mais tarde, converteria os Hinton nos maiores produtores de açúcar da ilha.

Nessa altura, no entanto, estava deslumbrado com a nova moda na burguesia britânica. O Foot-Ball nascera uma vintena de anos antes, mas agora havia cada vez mais rapazes a praticá-lo nos colégios privados. Harry tinha-se deixado fascinar pelo jogo e queria mostrá-lo aos amigos. Então, antes de embarcar no vapor que o traria de férias a casa, decidiu incluir uma bola de couro na bagagem.

Os Hinton tinham a sua residência de verão ali, no que então era a Quinta da Achadinha. O terreiro era de terra batida e dava um campo perfeito para uma partida. Harry explicou as regras aos amigos, a maioria ingleses da Madeira, mas também alguns portugueses de famílias abastadas. Então, numa tarde veranil do último quarto do século XIX, jogou-se pela primeira vez futebol em Portugal.

A 5 de fevereiro de 1985, mais um século depois, nascia contra todas as probabilidades Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Era o quarto filho de Maria Dolores e o primeiro que ela pensou não ter. Quando percebeu que estava grávida, contou a mulher na biografia Mãe Coragem, escrita por Paulo Sousa Costa, tentou convencer o médico a fazer-lhe um aborto. Mas este recusou. Ela insistiu na interrupção com a mezinha caseira que a vizinha lhe ensinou.

"Tudo o que tinha de fazer era ferver uma cerveja preta, bebê-la até ao último gole, e correr até sentir que o corpo não aguentava mais esforço." Cumpriu as recomendações. Esperou uma hora, esperou duas. Nada. Estava preocupada com o dinheiro que faltava em casa para alimentar mais uma boca, mas nada parecia demover o embrião de querer nascer.

O parto ocorreu sem incidentes, era afinal o quarto filho de Maria Dolores. Antes mesmo de depositar-lhe o rapaz nos braços, o médico virou-se para ela e fez um comentário que a mulher nunca esqueceu: "Tem pés de futebolista."

A rua onde aquele miúdo, que nasceu de um pontapé do destino, se fez melhor jogador do mundo dista sete quilómetros do campo onde o futebol português teve a sua alvorada. Sete - o número que Cristiano traz preso às costas e que um planeta inteiro reconhece pertencer-lhe. Bem vistas as coisas, ninguém chega ao Olimpo sem anúncio.

Evangelho

Todos os anos há na Madeira um torneio infantil de futebol chamado Atrapalhança, gíria madeirense para o futebol de rua. Miúdos dos escalões de formação dos clubes do arquipélago encontram-se em junho para disputar uma série de partidas de 15 minutos. As regras são iguaizinhas às do Mundial: na fase de grupos há quatro equipas e as duas primeiras passam aos oitavos de final. A partir daí é sempre a eliminar.

"Foi aí que o vi jogar pela primeira vez", conta Pedro Talhinhas, que em 1995 era treinador das camadas jovens do Câmara de Lobos, clube que acolheu e venceu essa edição da copa. Era bom mister e no ano seguinte foi contratado pelo Clube Desportivo Nacional para tomar conta da canalha. Antes de assinar o contrato pediu apenas que lhe trouxessem um garoto: Ronaldo.

"Já me tinha constado que o Andorinha tinha um miúdo que era bom jogador, mas quando o vi em campo é que percebi porque é que toda a gente se desfazia em elogios." Cristiano era franzino, mas fazia uma coisa que Talhinhas nunca tinha visto num gaiato de 10 anos. "Jogava de cabeça levantada, olhava para a baliza em vez de olhar para os pés. Aquilo era um sinal."

Tinha velocidade e drible, além do mais, e aquela coisa em que tantos adultos falhavam: altivez no campo. "Logo o Cristiano, que era todo encolhido quando se falava com ele", recorda Fernão Barros Sousa, diretor do Nacional com a pasta das captações. Era para além do mais padrinho de batizado do miúdo. "Contratámo-lo por 100 contos, um recorde absoluto por um puto de dez anos". O Abelhinha, alcunha por que era conhecido no clube anterior, não era só o melhor da ilha, era também o mais caro.

Ronaldo gostava do Marítimo, mas agora não tinha outra hipótese que não ir para o Nacional. "Era infantil mas tão bom, tão bom, que comecei a convocá-lo para os iniciados. E ele batia-se sem medos com miúdos três anos mais velhos", conta Talhinhas, o antigo treinador. Entre 1995 e 1997, a equipa dominou os escalões de formação da ilha.

No entanto, quando Barros Sousa viu Portugal perder a final do Euro 2004 com a Grécia, aquilo de que se lembrou não foi dos jogos todos que Ronaldo ganhou. Lembrou-se da Atrapalhança de 1995 . Cristiano caído no chão, as lágrimas a cairem-lhe do rosto, a raiva de não ter atingido o topo. "Aquela expressão era igualzinha à que lhe tinha visto quando o Andorinha caiu nas meias-finais contra o Câmara de Lobos."

E então o padrinho pensou que aquele momento era um anúncio da História que estava por escrever. "Se depois de perder a Atrapalhança ele conseguiu tornar-se o melhor jogador jovem da Madeira, perder a final do Europeu só podia significar que ele ia ser o melhor da Europa. E foi, não só da Europa como do mundo inteiro. Lembra-se que ele também chorou quando saiu lesionado da final de Paris em 2016? Pois é, e Portugal ganhou. Escreva o que eu digo: sempre que o Cristiano chora algo de extraordinário está para acontecer."

Êxodo

O primeiro artigo de jornal dedicado a Cristiano foi publicado a 2 de maio de 1997 no jornal O Desporto Madeira. Era o principal semanário desportivo da ilha - tinha começado a ser publicado em 1992 e acabaria por fechar portas no final de 2008. "Ronaldo no Sporting já na próxima época", lia-se no título de um perfil de página inteira. "Infantil do Nacional parte em setembro."

Duas fotografias, uma do miúdo de 12 anos com a camisola do clube de Alvalade, outra dele ao lado da mãe na sala de casa. Atrás de Dolores um móvel apinhado de bibelôs, atrás do rapaz um quadro do Menino da Lágrima. "Está de parabéns toda a Madeira, é a primeira vez que um futebolista de 12 anos ingressa num dos grandes do futebol português." Orgulho repetido na semana seguinte, no mesmo semanário - que entrevistara o presidente do Andorinha, seu primeiro clube. "Um dos nossos miúdos a caminho do continente", dizia Jorge Serrão. "É incrível."

O acordo tinha sido firmado um par de meses antes. Durante as férias da Páscoa, o rapaz tinha ido prestar provas a Lisboa, acompanhado pelo padrinho. "Quando o Osvaldo Silva, treinador das camadas jovens, o viu jogar, disse-me logo que ele tinha um talento fora de série", conta Fernão Barros Sousa. "Até me vieram lágrimas aos olhos. Era a confirmação de tudo o que eu sempre dissera. O Cristiano era um diamante."

O Nacional tinha uma dívida de 25 mil contos ao Sporting e durante semanas os clubes negociaram um perdão em troca do passe do madeirense. "Era um valor muito alto por um miúdo, mas ele tinha deixado uma impressão tão forte que eles acabaram por fechar negócio." No início de setembro, Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro despediu-se dos pais e dos irmãos e tomou o avião para a capital. Era o início de uma aventura que o levaria a Manchester, e depois a Madrid.

O seu primeiro jogo com a camisola verde e branca aconteceu a 14 de outubro de 1997. Foi um particular de infantis contra os miúdos do Sindicato, no campo das Curvas, em Setúbal. Cristiano só jogou 25 minutos, mas marcou quatro golos. Aos 2, 14, 17 e 21 minutos. O Sporting ganharia essa partida por 17-0. No primeiro jogo oficial, uma semana mais tarde, frente ao Olivais e Moscavide, levaria por seis vezes a bola à baliza adversária. Que miúdo era aquele?

O jornal Sporting entrevistá-lo-ia a 30 de novembro, chamando-lhe "Ronaldinho, menino e moço". Ali, o rapaz explicava que cada golo era uma alegria diferente, e cada um era especial. Aos 16 anos, foi chamado pela primeira vez ao plantel principal do clube, para um particular contra o Atlético. Marcou o primeiro golo. Bölöni queria-o logo a jogar com os séniores, mas o rapaz não podia - era simplesmente demasiado novo.

Quando se estreou oficialmente na Superliga, a 7 de outubro de 2002, tinha 17 anos. Marcou dois golos ao Moreirense em casa e a mãe, que assistia à partida na bancada, desmaiou de emoção. No início da época seguinte, Alex Ferguson contratá-lo-ia para o United e torná-lo-ia eterno. Amanhã, Cristiano sobe ao relvado onde pode escrever a história que lhe falta - a de campeão do mundo. Então anda bater, Ronaldo, tu bates bem. E se perdermos, como ele disse num diálogo inesquecível com João Moutinho, "que se foda".