Desporto
16 outubro 2021 às 22h03

Dos zero aos 8 mil euros. Há jogadoras a recibo verde e poucas têm bons contratos

O DN investigou a realidade contratual em Portugal do ponto de vista das jogadoras, treinadores, clubes e empresários. Sindicato quer acordo coletivo de trabalho para acabar com discrepâncias salariais. Número de profissionais tem crescido de ano para ano. Na Liga BPI são 125, mas a maioria ainda está em situação precária. Só Benfica, Sporting e Sp. Braga têm plantéis 100% profissionais.

A jogadora mais bem paga da Liga BPI ganha cerca de 8 mil euros limpos/mês e joga no campeão Benfica. É uma das 125 atletas com contrato profissional no campeonato principal de futebol feminino. Uma competição onde o amadorismo ainda é a marca dominante - o que se reflete no desempenho das jogadoras, equipas, no trabalho dos treinadores e onde muitos clubes são obrigados a recorrer a esquemas e estratégias para pagar "alguma coisa" às jogadoras sem estrangularem as finanças. Em alguns casos, a própria existência. Benfica, Sporting e Sp. Braga são um caso à parte, num mundo onde já há alguns bons contratos.

Já lá vai o tempo em que as mulheres jogavam por um sumo e uma sandes. Mas, segundo o Sindicato de Jogadores, a maior parte das futebolistas ainda está em "situação precária", com contratos de prestação de serviços a recibos verdes e ajudas de custo. O sonho de poder viver do futebol faz muitas delas aceitar jogar na base da promessa de algo melhor e maior, como um salário condigno com a profissão de jogador de futebol (sem género). E a verdade é que o número de profissionais não pára de crescer e isso também diz muito da evolução da modalidade. Segundo a Federação, só do ano passado para este, o número de jogadoras com contrato passou de 75 para 125! Há quatro anos eram 22!

Segundo a investigação do DN, as assimetrias e discrepância entre o amadorismo puro, o profissionalismo e um plano intermédio refletem-se nos ordenados mensais que vão desde os 665 euros do salário mínimo obrigatório até aos 8000 euros. Das 125 profissionais, só cerca de um quarto supera os 3500 euros. Se a mais bem paga do Benfica recebe 8000 euros, a melhor paga do Sporting aufere 4500 euros limpos, por exemplo. No Sp. Braga, a média contratual ronda os 1500 euros/mês, embora haja atletas a receber acima disso.

Das 16 equipas da Liga BPI só três têm o plantel 100% profissional: Benfica, Sporting e Sp. Braga (nenhum quis falar ao DN sobre o assunto). Depois há o caso do Famalicão, que tem meio plantel profissional, e mais meia dúzia de emblemas que tem quatro, cinco ou seis jogadoras profissionais a receber entre o ordenado mínimo e os 1000 euros. Existem ainda pelo menos seis equipas sem qualquer profissional.

E já há vítimas da chamada profissionalização. O histórico Fofó (Futebol Benfica, um dos nove clubes que já foram campeões) viu o plantel decepado, nos últimos anos, por emblemas que podiam pagar mais e acabou por descer de divisão em 2020. Tem hoje apenas uma jogadora profissional, uma estrangeira a quem paga 1100 euros por mês, mais casa.

A jogadora estrangeira é por norma mais bem paga que a portuguesa. Além do ordenado têm direito a casa e carro. Mas há forma de contornar a coisa. Contratam-se jogadoras - alunas Erasmus, estrangeiras que têm o visto de residência garantido por serem estudantes, e não precisam de um visto de trabalho, logo também não precisam de um contrato como manda a lei.

Há contratos do tipo amador e profissional. E depois há o chamado "falso amadorismo" ou "semi-profissionalismo", que "reflete a incapacidade dos clubes suportarem os impostos associados ou simplesmente pouparem alguns trocos e não terem o fisco à perna", como revelou ao DN o presidente de um clubes da Liga BPI que optou pelo anonimato.

Os contratos profissionais têm claúsulas, prémios e objetivos como os do futebol masculino. Aliás, há clubes que, talvez por usarem as minutas do masculino, expressam que o contrato fica válido depois de registado na Liga Portugal... quando o futebol feminino é amador e da responsabilidade da Federação Portuguesa de Futebol - a entidade também optou por não reagir.

Quando se fala em dinheiro, o silêncio impera, ainda mais quando se admite recorrer a estratégias para fintar a lei sem fazer falta, claro. Há atletas que fazem do futebol a sua fonte de rendimento principal ou exclusiva, mas subscrevem acordos para pagamento de ajudas de custo - despesas de alojamento, alimentação ou deslocação mediante apresentação de despesas/faturas.

Outras assinam contratos qualificados como de prestação de serviços, onde em alguns casos lhes é requerida a emissão de recibos verdes entre os 300 e os 600 euros. No caso específico das ajudas de custo, as verbas são geralmente inferiores, mas tudo depende do acordo verbal. Os valores nunca são iguais dois meses seguidos, exatamente para evitar que seja visto com um ordenado encapotado de ajuda de custo. Também há clubes que fazem contratos e pagam na mesma ajudas de custo fora parte. Desta formas, os clubes poupam com taxa de IRS e Segurança Social.

"É habitual os clubes recorrerem aos recibos verdes na altura do primeiro vínculo", revelou uma jogadora da Liga BPI ao DN, explicando que a atleta abre atividade de desportista, passa recibo e fica isenta de descontos durante um ano. Por isso há tantos contratos de uma só época. Depois, se continuar, os valores são revistos e geralmente incluem o pagamento da Segurança Social, o que, por vezes, leva a diferendos e até a rescisões por serem acordos verbais e não estar clarificado quem deve fazer os descontos.

Uma outra jogadora em situação precária confessou que o contrato de prestação de serviço as deixa à mercê de uma dispensa. Ou seja, o clube pode decidir que não precisa do seu serviço. Juridicamente é mais complexo e há vários casos em tribunal que mostram a necessidade de um modelo contratual único.

Criar condições estruturais para salvaguardar os direitos das jogadoras de forma igual, sabendo que jogam em circunstâncias diferentes, é uma missão quase impossível. Por isso, o Sindicato de Jogadores, liderado por Joaquim Evangelista, quer "a celebração de um acordo coletivo de trabalho para o futebol feminino, que mantenha todas as garantias e direitos dos profissionais de futebol, mas tenha como objetivo regular na especificidade determinadas matérias: salários mínimos para a competição, prémios por objetivos e antiguidade, regime da gravidez, estágios e férias, carreiras duais, medidas de proteção e regras para prevenir e reagir ao assédio laboral e sexual, etc..."

Segundo Evangelista, "além da profissionalização da Liga BPI justificar este passo, é importante garantir os direitos gerais das profissionais de futebol e regular a especificidade das matérias que possam gerar dúvidas legais". Porque "fiscalizar e sensibilizar pode não ser suficiente".

O Sindicato tem desde 2012 um departamento só para o futebol feminino, liderado por Carla Couto (considerada a melhor jogadora da história do futebol feminino português). E criou recentemente uma comissão para pensar a modalidade e propor soluções políticas e regulamentares, que trabalha numa proposta de acordo coletivo de trabalho para as jogadoras que participem nas competições nacionais.

Além disso urge olhar para a questão da gravidez. A FIFA já avançou com regras específicas, que impedem o despedimento ou despromoção salarial, e também para os efeitos da menstruação no rendimento desportivo e saúde e contratualizá-los.

Do ponto de vista dos emblemas ditos pequenos, mas com muita tradição no futebol feminino, caso do Clube de Albergaria "é óbvio que não será possível acompanhar os clubes grandes". Desde logo pela falta de condições financeiras, que levam "à dificuldade em angariar recursos humanos necessários para competir em pé de igualdade", segundo o coordenador do emblema fundado em 1890, José Carlos Bastos. E também "pela falta de instalações dignas e horários adequados que possam ser atrativos para jogadoras com qualidade".

O Albergaria tem atualmente cinco profissionais no plantel sénior. Todas com contrato celebrado segundo a minuta disponibilizada pela FPF e com o valor do salário mínimo nacional (665 euros). Quem não tem contrato profissional recebe apoios para deslocação e alimentação.

José Carlos tem "a perfeita noção que competir contra os clubes profissionais é uma tarefa difícil" e leva o clube à tarefa hercúlea e inglória até de redefinir os objetivos época a época. Apesar disso, no ano passado foram a sensação da prova. Ficaram em 5.º lugar, atrás de Benfica, Sporting, Sp. Braga e Famalicão: "O segredo foi a competência da equipa técnica liderada pela Paula Pinho, profunda conhecedora do futebol feminino em Portugal e da sua evolução, conjugada com a qualidade de um plantel bastante homogéneo, ambicioso e solidário, tendo na retaguarda uma estrutura que procurou, dentro de todas as limitações - financeiras, recursos humanos e deficientes instalações para a prática da modalidade -, dar o apoio necessário para obtenção de resultados positivos."

Segundo este responsável, a falta de instalações e horários adequados para treinos são um enorme entrave na evolução do futebol feminino. Além disso, a "primazia" do futebol masculino em detrimento do género feminino "é um exemplo da desigualdade de tratamento entre os géneros, assim como as questões financeiras".

E tendo em conta que não se fazem campeonatos sem equipas, nem equipas sem jogadoras, o atual formato do campeonato também não serve os interesses dos ditos clubes pequenos: "A Federação tudo tem feito para que clubes como o nosso acabem por sair da Liga BPI para dar oportunidade a clubes profissionais. O facto mais evidente e relevante é o modelo competitivo instituído para a Liga BPI na época 2021-22." O campeonato está dividido em Zona Norte e Zona Sul, cada uma com oito equipas. Na segunda fase, as quatro primeiras de cada série lutam pelo título de campeão e as outras para não descer.

Para José Carlos, "o futebol feminino em Portugal está a caminhar apressadamente e sem qualquer planeamento estratégico para o profissionalismo". Culpa de "quem procura subir o ranking das seleções nacionais, com a entrada dos clubes chamados grandes na modalidade", e acima de tudo, "com a entrada em cena dos chamados agentes de jogadoras, que sem qualquer escrúpulos, alguns vendem ilusões às jogadoras, inflacionando o mercado".

Apesar de não haver transferências pagas - à exceção de Ana Borges, do Chelsea para o Sporting, por 30 mil euros, e Milena do Famalicão para a China, por 50 mil euros -, essa é uma área em franco crescimento em Portugal e ainda no mês passado foi criada uma agência apenas para o segmento feminino (a Teammate Football Management de Raquel Sampaio, antiga jogadora e ex-responsável do Sporting).

Uma das agentes mais ativas e que representa mais atletas de topo é Estrela Paulo (ver entrevista na pág. seguinte). Tem jogadoras profissionais em sete equipas da Liga BPI, incluindo as três atuais capitãs da seleção nacional, que são também as capitãs do Sp.Braga (Dolores Silva), Sporting (Ana Borges) e Benfica (Sílvia Rebelo). A campeã europeia e vice-campeã mundial, a holandesa Anouk Dekker, também faz parte das suas atletas agenciadas.

E como é treinar uma equipa onde umas recebem para correr e marcar golos e outras não? "Já treinei equipa amadoras, semi-profissionais e profissionais a 100%, e costumo dizer às jogadoras que ninguém é obrigado a fazer o que não quer. Se uma jogadora amadora assume o compromisso de jogar numa equipa profissional, eu como treinador vou exigir dela o mesmo. Eu tenho o direito de exigir o máximo dela, recebendo ou não. Também o exigi a mim mesmo quando trabalhei sem receber em alguns clubes. O investimento no treino é depois recompensado com o jogar ou não, não com o recebe ou não", justificou ao DN o treinador Nuno Cristóvão, do Racing Power.

Isso não impede o cinco vezes campeão nacional de considerar que "não faz sentido haver na mesma equipa jogadoras que recebem e outras não". E defende que os clube deviam pagar a todas, mesmo que fosse o ordenado mínimo, para ele e os outros técnicos "terem argumentos" para exigir outro tipo de rendimento e empenhamento.

O técnico orgulha-se de dizer o que, segundo ele, tem de ser dito sem medo de ficar sem emprego:"Temos o campeonato das equipas profissionais e o das equipas não profissionais. E dentro das não profissionais há equipas que conseguem bater o pé às profissionais, como o Albergaria no ano passado."

Para Nuno Cristóvão, é "complicado" quando a questão do treino e do jogo nada tem a ver com a bola. "Quando não sou um treinador à inglesa, com a gestão do orçamento, não quero nem saber a condição contratual das jogadoras, mas por vezes elas pedem ajuda e tenho de me envolver. No Torreense aconteceu uma vez e tive de pressionar a direção para pagar uma verba em atraso depois das capitãs falarem comigo", revelou o antigo selecionador nacional (2000-2004).

Segundo Nuno Cristóvão é cada vez mais difícil ter jogadoras numa equipa "sem contrapartidas financeiras". Mas a igualdade salarial que a América discute (e já conseguiu ao nível das seleções), em Portugal nem se vislumbra. "Tem a ver com a mentalidade dos dirigentes e a capacidade dos clubes lá chegarem", segundo o atual treinador do Racing Power Football Club (Seixal), equipa da segunda liga feminina, que tem um orçamento superior a algumas equipas masculinas da Liga 3 e que dava para gerir umas cinco equipas da Liga BPI.

No ano passado a Federação tentou incluir um limite orçamental no regulamento da Liga BPI. A medida foi considerada discriminatória em função do género e levou à criação do movimento Futebol Sem Género, assinado por mais de 200 atletas, que obrigou o organismo a recuar. Uma dessas jogadoras contou ao DN, que a ideia do chamado teto salarial surgiu depois de ser registado na Federação um contrato de 15 mil euros. Temendo que se abrisse um fosso entre os ricos e os pobres o organismo propôs um limite orçamental para criar mais equilíbrio entre plantéis, mas as jogadoras uniram-se porque viram na proposta um teto salarial encapotado e discriminatório, que serviria para os clubes se desculparem com contratos inferiores.

O organismo federativo abandonou a ideia e atualmente os orçamentos da Liga BPI são tão díspares quanto a realidade contratual. Vão desde os 100 mil euros aos dois milhões de euros. A competição ainda é amadora e a Federação paga aos clubes um prémio de participação de nove mil euros e mais 4900 euros (máximo anual) mediante determinados requisitos ligados à formação. E há ainda compensações para quem começar o jogo com pelo menos oito jogadoras portuguesas e quem apresentar 14 jogadoras nacionais na ficha de jogo. O prémio por vitória é de 500 euros e aí os grandes/profissionais também amealham mais alguns milhares de euros.

isaura.almeida@dn.pt