Shyamalan pede para acreditarmos

Batem à Porta entra diretamente para a galeria de clássicos de M. Night Shyamalan. Uma história sobre sacrifício familiar que esconde surpresas e ressonâncias bíblicas. Tem ainda um desempenho milagroso de Dave Bautista, anjo exterminador ficará na memória.

Já se percebeu que por um inflamado entusiasmado de bloggers e críticos americanos surge a perceção de que Batem à Porta é o melhor filme de M. Night Shyamalan dos últimos 20 anos. Pode ser verdade mas é injusto não reconhecer que ao longo de uma atividade muito profícua este realizador tenha feito alguns dos mais siderantes objetos de medo na paisagem americana.

Que dizer do díptico Fragmentado (2016) e Glass (2019), que na verdade eram a continuação de O Protegido (2000)? E não será A Visita (2015) um dos mais espantosos exercícios de suspense contemporâneos? O que na verdade funciona como bloqueio mental para muitos são dois filmes em que o seu próprio método foi traído: os nada memoráveis O Último Airbender (2010) e Depois da Terra (2013). Mas não se duvide: Shyamalan é um dos poucos grandes autores do cinema americano a saber trabalhar com a lógica dos grandes estúdios.

Serve isto para alertar que este novo título funciona como uma abertura de uma nova etapa, um esboço para um novo ciclo. E é o próprio que confessou ter tido uma abordagem diferente para este projeto cujo início não veio da sua cabeça - Shyamalan é um dos três argumentistas, juntamente com Steve Desmond e Michael Sherman, tendo supostamente adaptado a premissa em função do seu cinema e tornando-a bastante mais pessoal do que as suas próprias histórias de base. Uma premissa que sustentava o livro The Cabin at the End of the World, de Paul Tremblay.

Tudo começa quando uma menina de origens asiáticas é confrontada por um estranho num bosque onde está a passar férias com os seus pais adotivos, um casal gay da cidade. O pai Eric e o pai Andrew cedo percebem a ameaça. De repente, surgem mais duas mulheres e um homem em pose ameaçadora. Em seguida, a cabana da floresta é literalmente invadida e esta família aprisionada. Segundo os quatro estranhos, há que tomar uma decisão sacrificial. A frase promocional do filme diz tudo: Salvar a humanidade, Salvar a tua família. Faz a escolha.

Supostamente, estes quatro estranhos tiveram visões de um apocalipse e foram levados até aquela cabana por acreditarem que se houver um sacrifício de algum dos membros da família, o mundo não é exterminado através de desastres naturais e de cataclismos capazes de fazer cair aviões e haver um surto de raios. Como é óbvio, no começo, nenhum dos pais parece acreditar no que ouvem, mesmo quando um dos invasores é sacrificado para dar o exemplo. Eric e Andrew julgam estar na presença de fanáticos religiosos.

O que é isto!?

O melhor de Batem à Porta é o seu caráter de estarmos a ver um thriller onde a tensão surge por não deduzirmos logo à partida para onde o enredo nos leva. É daqueles exemplos de gostarmos de estar à nora e perguntar o que é isto, afinal? Uma perplexidade que se torna sempre e cada vez mais inquietante. A estrutura narrativa sabe saborear uma densidade emocional que se alimenta de algo realmente inesperado onde as pistas, uma a uma, caem que nem castelos de cartas. E o melhor de tudo isso é que nem é sequer uma busca por twists e reviravoltas. É antes sim uma procura de perturbação que fala ao íntimo de cada nós e das nossas crenças sociais. Um, como agora se diz, WTF film, mas com um pendor clássico que sempre acompanha os melhores momentos do criador de O Sexto Sentido.

Pelo peso das referências bíblicas e de uma possível encarnação dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, Knock at the Cabin joga com os medos das possíveis manifestações contemporâneas do fim do mundo. Joga-o ao nível do subconsciente, evocando os medos mais interiores destes dias em que o aquecimento global e as crises ambientais alimentam o pesadelo. E é precisamente aí que o filme propõe atiçar o espectador com esse conceito do espetáculo do fim, algo que em 2008, em O Acontecimento, Shyamalan já estava tinha no menu. Se antes era mais naif, agora a carga de sugestão parece ter um mistério que a sustenta de forma mais pragmática.

O fator gay

Golpe de génio é a forma como todo o procedimento dessa vontade de nos fazer acreditar seja sustentado por um método de suspense que dá tudo no grande plano. Os close-ups nos rostos dos atores transportam uma dor e uma tensão dramática que parece uma intenção de extremidade trágica. Chega a ser exasperante mas compensa. Funciona inclusive como uma montagem de um puzzle da condição humana. Ou, por outro lado, a hipérbole da atual neura da América onde a infelicidade é uma via aberta para o apocalipse. Por isso, os momentos dramáticos do filme pedem uma rajada melodramática que contrapõe ódio e amor, vontade de morrer (com sacrifício) e de sobreviver (em família). E torna-se óbvio que o facto da família ser com pessoas do mesmo sexo ajuda a ganhar um fator extra de crónica destes tempos.

Neste registo de home invasion, Batem à Porta tem uma carga de novidade que desconcerta. Desconcerta e inquieta. Temos, repito, é que respeitar esse gesto incessante de Shyamalan em pedir para acreditarmos em tudo isto. Acreditar.

dnot@dn.pt

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