Os libertinos de Emmanuel Mouret
Emmanuell Mouret assina outro filme em cheio. Diários de uma Paixão Passageira é uma grande comédia romântica! Uma história de amantes: simples, elegante e nada moralista. Estranhamente não passou na Festa do Cinema Francês e chega sem ter tido visionamento para a imprensa.
Prazeres. Prazer em encontrar Sandrine Kiberlain numa forma graciosa. Ela e Vincent Macaigne, aqui a provar que não é só um ator de type-cast, mas prazer também em sabermos que estamos no universo muito particular de um autor: Emmanuel Mouret, cada vez mais um dos cineastas franceses que conta. E é um universo algures entre Woody Allen e Éric Rohmer, um cronista das subtilezas de romances contemporâneos, um conhecedor das relações amorosas de uma França sem constrangimentos sexuais.
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Em Portugal - somos sortudos - a sua obra tem tido sempre um eco contínuo a nível de estreias: de Só um Beijo, Por Favor (2007), A Arte de Amar (2011), até ao aperfeiçoamento de obras como A Fabulosa Caprice (2015) e o recente As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos, seguramente a surpresa maior de 2020 no cinema francês. Um autor que convoca sempre questões subordinadas ao amor e à paixão entre jovens casais, uma espécie de cronista amoroso dos nossos dias.
Agora, volta a fazer o mesmo. Chronique d"une Liason Passagére é uma das joias: uma crónica subtil sobre um caso de amantes - se é de amor ou de paixão, aí está o segredo do filme que este texto não fará exemplo de spoiler.
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Na verdade, todo o cinema de Mouret é uma pergunta em parangonas: o que é a paixão e o amor? Quais os ditames sobre a fidelidade? O que é o romance para um homem ou uma mulher?
Com Mouret não sobram respostas, apenas perguntas. Perguntas e dúvidas: o que queremos de um romance? O que sai de uma ligação amorosa? Seja como for, vale a subjetividade, são filmes que podiam estar num loop de um National Geographic sobre como casais franceses gerem a sua vida romântica.
Este, em particular, é mais explícito: fala de um caso de adultério - uma mulher nos 40 inicia uma relação puramente sexual com um trintão. Ele é casado, ela está livre, mas há uma regra neste jogo: tudo só funciona se for apenas sexual, sobretudo porque ele é casado.
O tempo passa: eles continuam a encontrar-se e a ideia de romance floresce, mesmo quando ele continua a fazer a sua vida de casado e de bom chefe de família.
Encontro após encontro, algo se passa para além da mera ocorrência sexual. Por um lado, o homem pensa que não está a enganar a mulher por tudo ser apenas uma transação sexual, por outro, ela tenta não se apaixonar por ele apesar de uma atração que talvez seja mais do que física.
À medida que a regularidade dos encontros se transforma numa norma e ambos começam a estar cada vez mais tempo juntos, surge uma decisão: cumprir uma fantasia sexual, uma ménage à trois. E depois dessa experiência com uma mulher casada, algo muda na relação entre os dois amantes. A partilha dos corpos, ao que parece, tem sempre consequências.
Dentro da seleção oficial de Cannes 2022 fora de competição, este novo Mouret é também um caso de estudo nas bilheteiras francesas: juntamente com L"Innocent, de Louis Garrel, foi um dos sucessos inesperados. Ou como a arte da sedução neste dias pode ser um peso intelectual do moralismo filosofal.
Vamos ser francos: um filme com temas como a traição conjugal, a glorificação do sexo em grupo e do romance lésbico poder ser um manifesto é, já por si, uma declaração de intenções.
De facto, Mouret vai para além disso: tenta, mais do que nada, não julgar, não ter posições, mesmo quando nos faz refletir que o desejo é aquilo que mais inegociável e íntimo temos. E essa é a pedra-de-toque do realizador: mostrar-nos isso de forma cruel, tal como cruel é uma amante dizer-nos que tudo é passageiro.
Um cineasta que propõe isso mesmo com uma elegância tão nítida como delicada: Mouret examina tudo isso mas, pelo caminho, propõe caminhos de narrativa, alguns dos quais sem problemas em passarem por "entretenimento": em última instância, este é um filme para muitos "públicos", mesmo apesar do seu lado pudico - fala-se sempre muito de sexo mas nunca o vemos. Às vezes, a elipse sexual é um trunfo...
Nesta sinfonia de corações quebrados em Paris aborda-se igualmente com leveza e melancolia uma certa tradição do parisiense poligâmico, quase como se fosse uma proclamação do direito às relações abertas. Mouret filma esse orgulho francês com uma liberdade que dispensa os paninhos quentes da moral, sempre sem perder fio à meada do romanesco, tal como tem sido a sua linha em filmes anteriores.
E aí é o cineasta a reivindicar um certo sentido de familiaridade, de terreno de pertença. E nos seus gags inteligentes está uma possibilidade de declaração de humor contra a contaminação em França da ruindade das comédias "trogloditas". Talvez por isso, Diário de uma Romance Passageiro seja um bálsamo nestes dias, tal como outro dos êxitos do cinema francês atual, L"Innocent, a comédia familiar de Louis Garrel.
Afinal, as comédias românticas podem ter tipos angustiados a dizer: "Não sou de fazer dramas"... Podem, sobretudo, ter um grau de reflexão culta e civilizada sobre as fintas dos nossos corações e os imprevistos das diretrizes do desejo de homens e mulheres.

dnot@dn.pt
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