O FEST de Espinho está maior, melhor e vacinado
Terminou ontem em Espinho o 17.º FEST, um festival que deu a vitória a La Civil, filme mexicano vindo de Cannes. Porventura, a melhor edição de sempre, que agora ainda prossegue em formato de extensão na Culturgest e na plataforma Filmin.
Um festival de verão passou para o outono devido à pandemia e trouxe consigo sol a Espinho. O FEST- New Directors/New Films Festival terminou ontem e teve a sua melhor seleção de sempre, uma safra em estado de graça, quer nas curtas nacionais, quer na competição do Lince. A sala do casino e o Centro Multimeios tiveram as multidões habituais de jovens cinéfilos e cineastas estrangeiros (este ano, devido às restrições o número terá baixado nas inscrições) que participaram neste evento mais conhecido lá fora do que cá. Ao longo de 17 anos tem sido uma espécie de segredo bem guardado, uma plataforma de profissionais que se abre ao público entre sessões de pitching, masterclasses e uma rede de networking notável.
O Lince de Ouro foi atribuído a La Civil, de Teodora Mihai, um pesadelo mexicano sobre o flagelo dos raptos nesse país. Um título proveniente do Festival de Cannes, tal como outros dos bons filmes do festival, em particular um dos premiados do Un Certain Regard, o estranhíssimo Cordeiro/Lamb, de Valdimar Jóhannson, em boa hora adquirido pela Films4You para o mercado português. Uma mistura de arte surreal com terror psicológico que nos leva até a uma quinta na Islândia na qual um casal educa um menino com cabeça de cordeiro. Fábula sobre a nossa animalidade, Cordeiro é um conto absorvente onde a sueca Noomi Rapace talvez tenha o papel da sua vida. O mesmo se poderá dizer de Rien à Foutre, de Emmanuel Marre e Julie Lecoustre, no qual Adèle Exarchopoulos supera-se na pele de uma assistente de bordo que tenta encontrar uma carreira numa companhia low-cost que a humilha. Um filme sobre relações de trabalho e a crise laboral dos precários filmado com uma intimidade realista - esteve também no último Festival de Cannes, bem como o filme de abertura, La Fracture, de Catherine Corsini, relato de uma situação de crise numa sala de urgências de um hospital em Paris numa tarde onde os coletes amarelos protestam em força nas ruas. Um objeto com um olhar lapidar acerca do novo mal-estar francês.
Na competição nacional, a vitória foi para Miraflores, de Rodrigo Braz Teixeira, um relato de uma geração num bairro de Lisboa. Uma estreia significativa de um cineasta capaz de inventar uma noção moderníssima de romanesco. E foi precisamente na competição das curtas que as melhores descobertas tiveram lugar. E o que dizer de Sobrevoo, do flaviense Rúben Sevivas? Auto-retrato de um cineasta a contas com o trauma de um assalto que lhe roubou a possibilidade de terminar um filme. Uma confissão pungente e com uma audácia humana a lembrar os home movies de Chantal Akerman. E do Take One do Curtas para esta competição, aplausos fortes e merecidos para Musgo, de Gonçalo L. Almeida e Alexandra Guimarães, uma fantasia do real em torno dos mitos sobrenaturais de Trás-os-Montes. Filme-de-escola que é muito mais do que isso. Tudo isto numa seleção que ainda tinha pesos-pesados como a animação esplendorosa O Voo das Mantas, de Bruno Carnide; o vencedor da menção honrosa We Won"t Forget, de Edgar Morais e Lucas Eberl e o já clássico O Lobo Solitário, do multifacetado Filipe Melo.
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Se na seleção dos filmes esteve o tesouro, nas habituais masterclasses também as propostas eram irrecusáveis. Isabel Coixet, a cineasta espanhola mais internacional, também esteve no FEST, tal como Irvine Welch, escritor e argumentista e Tony Grisone, argumentista inglês responsável por alguns dos filmes de Terry Gilliam.
Welch, para sempre ligado aos filmes Trainspotting, na sua masterclasse falou de como a literatura o levou ao cinema e realçou que depois da pandemia estamos numa fase em que se procura conteúdo de forma voraz. "Sobre Trainspotting tentei afastar-me das decisões da adaptação pois percebi que o John Hodge, o argumentista, e o realizador Danny Boyle, tinham uma grande relação. É um filme que muitos acham que é sobre droga, mas o livro era sobre a juventude".
Tony Grisone falou ao DN e não poupou elogios ao festival, salientando que os melhores festivais são sempre aqueles em cidades pequenas junto ao mar: "No FEST o importante não é a competição ou o negócio, são as conversas e a troca de ideias. Por ser à base de novos realizadores é também um festival para o futuro e as pessoas que aqui vêm falar não o fazem para acariciar a sua reputação". O Homem que Matou D. Quixote, de Terry Gilliam, escrito por Grisone, poderá finalmente chegar às salas nacionais em novembro...
Para Fernando Vasquez, programador do FEST, o balanço desta edição é muito positivo: "Este ano houve um salto qualitativo na competição internacional. Esta mudança de data permitiu-nos ir buscar filmes mais recentes a determinados festivais internacionais. O mesmo aconteceu com as curtas-metragens, tivemos um universo de escolhas mais amplo e escolhemos os melhores. De ano a ano vamos tendo um perfil maior! Os cineastas confiam cada vez mais em nós". Para o ano, o FESTt volta a realizar-se em junho. Para já, na Culturgest, em Lisboa, há uma extensão do festival até dia 16 com a retrospetiva em torno da obra da realizadora Isabel Coixet. Antes, no Trindade, no Porto, os mesmos filmes estiveram também disponíveis em formato de extensão.
dnot@dn.pt
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