Noite de Reis: A contemporaneidade de Shakespeare que resiste no tempo

Renato Godinho e Filipe Vargas estão entre os 13 atores em cena no Teatro da Trindade com Noite de Reis, de William Shakespeare. Falam sobre a construção das suas personagens e como a brincar se abordam assuntos sérios e atuais, mesmo num texto com mais de 400 anos.

Final da tarde a poucas horas de mais uma sessão de Noite de Reis, escrita por William Shakespeare (1564-1616) e em cena desde 26 de janeiro no Teatro da Trindade. Os atores começam a chegar, e com eles o burburinho dos preparativos no passo apressado sentido no ranger das tábuas de madeira do chão do velho teatro lisboeta. Antes de entrarem para os seus camarins e iniciarem a preparação de mais uma sessão, Filipe Vargas e Renato Godinho falam ao DN sobre esta comédia de enganos encenada por Ricardo Neves-Neves. A Filipe Vargas calhou-lhe fazer de mulher. Tal como no tempo de Shakespeare, quando as mulheres não podiam pisar o palco e todas as personagens eram interpretadas por homens. Ele é Olívia, uma nobre com tiques de jet-set de Cascais - já explicamos melhor. Foi convidado para o elenco ainda sem saber qual seria a sua personagem. Com Renato Godinho a história foi diferente. Ele que já atuou em peças de William Shakespeare estreia-se nesta comédia. O ator de 41 anos conta que foi convidado a apenas quatro dias do início dos ensaios para substituir um ator que não pôde fazer o papel do duque Orsino, a primeira personagem a surgir em cena, que passa a maioria da peça dentro de uma banheira, apaixonado por Olívia, que nunca viu.

A história desta comédia, uma das mais representadas em todo o mundo, foi escrita no início dos anos 1600 (em 1601, crê-se). Passa-se no reino de Ilíria e é uma trama sobre o amor, com disputas e trocas de género. O duque Orsino (Renato Godinho) está apaixonado, mas não é correspondido, por Olívia (Filipe Vargas). Entretanto, uma jovem mulher, Violeta (Cristóvão Campos), chega a Ilíria levada pelo mar após um naufrágio. E acredita que o seu irmão gémeo, Sebastião (Rafael Gomes), morreu afogado no mesmo acidente. Então, Violeta disfarça-se de homem, muda o seu nome para Cesário e encontra trabalho como mensageiro de Orsino. Violeta tem como função mandar mensagens de amor de Orsino para Olívia. Entretanto, Olívia apaixona-se por Cesário (Violeta), achando que é um homem. E Violeta apaixona-se por Orsino, mas não pode revelar o seu amor por ele, pois Orsino acha que ela é Cesário, um homem. Toda esta "confusão", que no original dura entre três a quatro horas, foi reconstruída por Ricardo Neves-Neves para duas horas de muita comédia, muita música, sem nunca deixar de falar dos temas sérios da humanidade, que se mantêm atuais desde há 400 anos, pelo menos.

Filipe Vargas explica essa contemporaneidade de Shakespeare: "seja comédia ou não, resiste ao tempo pela forma como é construído". O ator relembra o crítico literário, o norte-americano Harold Bloom que publicou o livro Shakespeare: A Invenção do Humano onde indica que os estereótipos e arquétipos do ser humano foram "organizados" por Shakespeare nas suas tragédias e comédias. "É o gozo absoluto, uma homenagem maravilhosa ao riso. Claro que há vários significados, mas há uma escrita para provocar o riso. É preciso ser um génio para se escrever uma peça com tantas piadas sem nunca ser anacrónico", acrescenta.

Renato Godinho relembra, por isso, o papel do bobo (Ruben Madureira) que nas peças de Shakespeare é o mensageiro das verdades através da ironia. "É a personagem mais lúcida", diz, e Filipe concorda: "É a personagem mais filósofa. Diz, por exemplo, É mais amigo dos inimigos do que dos amigos, porque os amigos não lhe dizem a verdade e lhe mentem".

Ricardo Neves-Neves não alterou muito o texto original, encenou a partir de várias traduções, introduzindo alguns maneirismos contemporâneos, muitos deles no decorrer dos ensaios, tal como a opção de criar uma Olívia com sotaque de jet-set, um processo que aconteceu durante os ensaios: "Esta Olívia foi surgindo, não era nada disto. O Ricardo é muito instintivo e apanha muito os nossos erros e coisas fora de cena, e às tantas surge esta personagem caprichosa e beta, que amua", explica Filipe Vargas. Essa mudança foi, para o ator o mais difícil na preparação da peça "Foi um trabalho enorme, já tinha a peça toda decorada com o tratamento por vós e às tantas mudamos para o tratamento por você. Foi difícil, porque já estava impresso no cérebro".

Já para Renato a maior dificuldade da preparação de Noite de Reis foi a intermitência da sua personagem. "Tem quatro cenas em cinco atos. Percebo a função da personagem, mas é cumprir a função técnica mais do que construir um grande arco dramatúrgico ou um percurso emocional".

A confusão organizada

Correrias, quedas para buracos, motas em palco, muita gente - são 13 atores - e muitas coisas ao mesmo tempo, a acrescentar a música tocada ao vivo, por uma banda composta em exclusivo por 13 elementos femininos, colocadas numa espécie de mezzanine em vez do habitual fosso de orquestra. Uma dificuldade acrescida para os atores. "As vozes e os instrumentos estão muito mais presentes e até termos encontrado um equilíbrio entre tudo, saímos muito cansados dos ensaios, era tudo ao mesmo tempo, os efeitos sonoros, os instrumentos, as vozes... no fundo, foi como se fosse um retrato desfocado e que todos os dias se ia focando até ficar uma imagem nítida. Exigiu e exige uma concentração absoluta", conta Filipe Vargas. Renato Godinho complementa, "é um desafio com tanta coisa a acontecer, e é inevitável que as pessoas se deixem levar pelo lado mais divertido e lúdico, mas o desafio maior é pensar, no meio de tanta coisa, o que é que Shakespeare estava a tentar dizer com isto? O que é muito interessante. Desde a questão da identidade de género, à identidade sexual, aos enganos que aqui até podem parecer superficiais".

Apesar das mensagens do texto, das falas de época, da música contemporânea (de Spice Girls a Destiny"s Child) é a comédia em Noite de Reis que ambos os atores voltam a sublinhar. "Independentemente de se tirarem ilações, se as pessoas saírem da peça com a sensação de que estiveram duas horas a rir e que isso de alguma maneira possa suavizar a sua atitude num mundo em que as pessoas tendem a andar de dedo em riste e maldispostas, que o riso tenha essa capacidade de ser um amaciador destas raivas que estão ainda pior depois da covid, é o mais importante. É bom que haja mais espetáculos em que o humor tenha um forte cariz e se acontecer com maior qualidade, seria um mundo muito melhor", sublinha Filipe Vargas. Para rir e refletir no Trindade até 19 de março.

filipe.gil@dn.pt

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