MONSTRA: entre Portugal e o Japão
O centenário da animação portuguesa e o Japão como país convidado são os dois grandes polos do 22º festival MONSTRA, que começa hoje em Lisboa, terminando no dia 26. Há mais de 400 produções para descobrir.
O filme que nos deu a honra de uma primeira nomeação aos Óscares pode não ter trazido para casa a estatueta dourada mas conferiu uma inequívoca vitória ao cinema português. Esta é a nota que importa fazer no arranque da 22ª edição da MONSTRA, o Festival de Animação de Lisboa que regressa hoje ao Cinema São Jorge, e que, justamente, terá Ice Merchants em competição, prolongando por cá a aura da belíssima curta-metragem de João Gonzalez, por estes dias com números de bilheteira a meterem respeito. Isto no ano em que se comemora o centenário do cinema de animação português, veja-se a coincidência...
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A animação portuguesa tem uma "história rica", começa por dizer ao DN Fernando Galrito, o diretor artístico da MONSTRA. "Desde O Pesadelo do António Maria, de Joaquim Guerreiro - considerado o primeiro filme de animação português, que celebra 100 anos -, essa história é marcada por uma grande qualidade, diversidade de técnicas, vanguardismo e, muito importante na minha opinião, uma ligação à nossa cultura, seja nos temas, seja nos materiais utilizados, ou nos argumentos e narrativas às quais sempre se juntou uma grande criatividade. Ainda antes do que podemos chamar de "novo cinema de animação português", que se inicia com o filme Oh Que Calma [1985], do Abi Feijó, alguns "mestres" haviam sido premiados pelas sua obras autorais, como Armando Servais Tiago ou Artur Correia e Ricardo Neto, ou na publicidade, Mário Neves, por exemplo... A nova geração vai ainda mais além."
O balanço que pedimos a Fernando Galrito neste centenário fá-lo percorrer uma imensa lista de nomes, que vai de Feijó a Xá (Alexandra Ramires), passando por Regina Pessoa, Pedro Serrazina, José Miguel Ribeiro, David Doutel e Vasco Sá, Mónica Santos, Alice Guimarães, Pedro Brito, Bruno Caetano, Joana Imaginário, Laura Gonçalves, entre outros. São apenas alguns dos autores nacionais deste cinema, entre eles vários já premiados nos maiores festivais de animação do mundo, como "Annecy, Zagreb, Hiroxima, Montreal, Clermont-Ferrand, e nacionais como a MONSTRA e o Cinanima."
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Chegamos assim à nomeação para o Óscar de João Gonzalez e da sua produtora, Cola Animation, que "peca apenas por tardia". Nas palavras do diretor da MONSTRA, "o cinema de animação português está bem e aconselha-se", mas "precisa de mais apoios, estatais e também privados, para ser ainda maior e concorrer na grande produção de longas, onde as duas agora em apresentação na MONSTRA 2023 - Os Demónios do Meus Avô, do Nuno Beato, e Nayola, do José Miguel Ribeiro - provam bem do que somos capazes."
Precisamente, Os Demónios do Meu Avô é um dos destaques desta edição. Um filme que começa por mostrar, num registo de animação digital, a vida urbana e a realidade do trabalho nas grandes empresas através de uma personagem, Rosa, que não se desvia um minuto dos objetivos da carreira, até ao dia em que a morte do avô a leva de volta à casa da sua infância e às memórias que esta encerra. Nessa transição para o meio rural, a longa de Nuno Beato ganha novas texturas, despindo-se dos traços lisos e transformando-se em animação stop motion, com toda a consistência visual que dá uma sensação de vínculo à terra. É aí que a história de uma jovem mulher perdida na frieza da linguagem moderna da cidade encontra o seu coração: o regresso às origens traduz-se num regresso ao próprio imaginário do interior português, que aqui se cruza com uma vertente fantasiosa (a pender para o pesadelo), sem deixar de se agarrar à força realista do contraste entre a "mente citadina" e o corpo conectado com a mitologia rústica, os tais demónios do avô.
Por falar em avô, há outra preciosa longa-metragem na competição que também se liga à experiência da terra e aos antepassados. Chama-se Interdito a Cães e Italianos, tem coprodução portuguesa e é maioritariamente falado em francês, apesar de as memórias serem italianas... O realizador, Alain Ughetto, monta o cenário com as próprias mãos, ao sabor da música de Nicola Piovani, enquanto nos situa no tempo e lugar - início do século XX, Norte de Itália - onde vai pesquisar as suas origens, seguindo a narração da personagem da avó, que fala de uma época muito difícil, marcada pelo trabalho de sol a sol, a guerra, a fome, a migração e a morte. É trágico, mas Ughetto dá-nos a dimensão toda do amor que envolve cada marioneta, casa ou montanha, numa verdadeira celebração não apenas do exercício da memória familiar, mas sobretudo do gesto artesanal da animação. Esta sim, inteiramente concebida em stop motion (estreia-se depois nos cinemas a 30 de março).
Ao nível das curtas-metragens portuguesas, para além de Ice Merchants, destacamos, entre outras, O Casaco Rosa, de Mónica Santos, filme que evoca a ação repressiva da personagem-título, o famigerado inspetor da PIDE, Alento, de Leonor Pacheco, uma experiência abstrata que estabelece um diálogo puro entre som e forma, e O Homem das Pernas Altas, de Vítor Hugo Rocha, também uma criação sensorial que trabalha o traço e a música numa simbiose a encher o espaço em branco. Já das curtas internacionais, salta à vista Amok, do húngaro Balázs Turai, objeto garrido, com um quê de psicadélico, que explora o tema dos demónios interiores (outro), O Marinheiro Voador, da dupla canadiana Wendy Tilby e Amanda Forbis, alto voo de um homem, na sequência de uma explosão, que funciona como ensaio cósmico (esteve nomeada para o Óscar, ao lado de Ice Merchants), Steakhouse, da eslovaca Špela Čadež, que se pode designar como a história de um bife queimado, Carta para um Porco, de Tal Kantor, um conto sobre o Holocausto e um porco que salvou uma vida, e Pássaro da Península, do japonês Atsushi Wada, uma animação delicada e hipnotizante em torno de um ritual de dança interrompido.
O anime Inu-Oh, de Masaaki Yuasa, um musical que mistura antiguidade e rock para narrar a amizade entre um bailarino com singularidades físicas e um jovem cego, ambos com talento para a música
Japão, esse velho (des)conhecido
Apesar da representação sempre forte na MONSTRA, este ano o Japão é mesmo o país convidado: assinalam-se os 480 anos da amizade com Portugal. Uma efeméride refletida numa série de propostas que contemplam diferentes expressões deste cinema, a começar pela exibição exclusiva, já amanhã (21h30), do anime Inu-Oh, de Masaaki Yuasa, um musical que mistura antiguidade e rock para narrar a amizade entre um bailarino com singularidades físicas e um jovem cego, ambos com talento para a música.
Este capítulo do programa está dividido entre "os primórdios - filmes dos anos 1920 até 1950, com destaque para mestres como Noburo Ofuji ou Kihachirô Kawamoto - e a nova geração, que se inicia com Osamu Tezuka, pioneiro na transição do manga (BD japonesa) para o cinema de animação (anime)", explica Fernando Galrito, que chama a atenção para dois importantes realizadores de anime (Mamoru Hosoda e Satoshi Kon), a par das referências obrigatórias do estúdio Ghibli, Miyazaki, pai e filho, e Isao Takahata. A não perder: "A presença entre nós do único realizador até hoje convidado para realizar um filme nesses famosos estúdios de Tóquio, Michaël Dudok de Wit, que para além de apresentar o respetivo filme, A Tartaruga Vermelha, vai também dar uma masterclass sobre Criatividade."
Não esquecer ainda a retrospetiva de Koji Yamamura, outra presença no festival com exposição e masterclass, nome de uma geração próxima da animação europeia, que, apesar de se manter ligada à tradição japonesa, "salta as fronteiras encontrando inspiração em autores como Kafka".
De resto, exposições e convidados é o que não falta num festival que vai exibir mais de 400 filmes até 26 de março, com muitos títulos portugueses, estreias nacionais e internacionais, entre as salas do São Jorge, Cinemateca Portuguesa, Cinemateca Júnior, UCI El Corte Inglés e Cinema City Alvalade (programação completa aqui). Para já, o arranque desta 22ª edição da MONSTRA dá-se com a inauguração da exposição "Centenário do Cinema de Animação Português: 100 anos, 100 filmes", na Cinemateca.
dnot@dn.pt
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