Fábio Porchat. Rir para desfazer preconceitos

Fábio Porchat está de volta a Portugal para dois espetáculos de stand up. Prestes a completar 40 anos, mantém a irreverência que o celebrizou e a vontade de contar histórias.

Tem uma gargalhada que ocupa todo o espaço na sala e fica ali a ecoar como uma música feliz. Fábio Porchat, que está de volta à Europa para uma tournée com o seu espetáculo de stand up (a 13 de fevereiro no Coliseu do Porto, a 15 no de Lisboa) não sente a obrigação de rir a propósito de tudo e de nada para demonstrar aos jornalistas como, na última década, se tornou um dos mais populares humoristas brasileiros. Ri-se com frequência, e de forma exuberante, com a mesma naturalidade com que, de repente, imita o sotaque seco, de vogais quase mudas, das últimas habitantes das aldeias de Trás-os-Montes, que conheceu durante as filmagens da série Viagem a Portugal. O que o move é diversidade de histórias e experiências humanas que vai conhecendo, no Brasil e no mundo, sendo o riso a linguagem que encontrou para a comunicar aos outros.

O que não foi tarefa fácil no Brasil de Bolsonaro, bastando, para isso, recordar que, na véspera de Natal de 2019, a sede da produtora da popular série A Porta dos Fundos (co-criação sua, com vários amigos e colegas, como mais adiante veremos) foi atacada com cocktails molotov depois da apresentação na Netflix do vídeo A Primeira Tentação de Cristo, onde Jesus Cristo era apresentado como homossexual. Ninguém se magoou mas, com esta experiência limite, Fábio aprendeu que, mesmo sem abdicar da irreverência, há que adaptar o humor aos suportes e aos respetivos públicos. É, por isso, que "este show de stand up não tem política nem religião", diz-nos. "Essencialmente é o mesmo espetáculo que apresentei, no ano passado, em nove cidades portuguesas, mas com alguns conteúdos novos. Continuo a falar das minhas viagens, das coisas malucas que me vão acontecendo, desde uma massagem erótica na Índia a uma dor de barriga no Nepal, coisas de que as pessoas se riem sem polémica." Porchat assume a necessidade de proporcionar aos seus espectadores um momento de leveza: "Quando eu escrevi o espetáculo, o Brasil estava a sair da pandemia, que no nosso país causou qualquer coisa como 700 mil mortos, tinha um clima muito tenso criado por um governo muito duro, mesmo demente. Perante isso, criei um espetáculo leve, em que pessoas de direita e esquerda, de qualquer idade podem ir juntas, sair dali e ir comer uma pizza, sem stress nem focos de tensão." Estamos perante aquilo a que os britânicos dão o nome de comic relief? "É isso mesmo. Ao longo de quase 20 anos de trabalho, compreendi que a comédia tem de lançar luz sobre temas controversos mas também tem de apagar outros se o estado de espírito das pessoas o exige. A vida não pode ser só crítica social e conflito."

O Porchat mais cáustico continua bem vivo no canal do YouTube A Porta dos Fundos, que nunca poupou nas críticas à presidência de Bolsonaro e ao ambiente de ódio criado pelos seus seguidores: "Foi muito difícil fazer humor durante muitos anos porque, antes de qualquer outra coisa, tínhamos de defender a democracia. Foi muito desgastante, que era, aliás, o que essa gente queria fazer: Colocar-nos num estado de exaustão mental que nos impedisse de trabalhar. O governo de Bolsonaro fez isso com a Cultura. Na verdade, ele não governava, ele vingava-se. Vingava-se nos artistas, nos ambientalistas, nas ONG"s. O ministro do Ambiente odiava o ambiente, a dos Direitos Humanos achava que não existem direitos humanos, o da Educação era contra a educação pública, o ministro da Saúde era contra a vacina. Por isso, quando apareceu alguém a decidir essa coisa básica de que se tinha de dar a vacina a toda a gente, nós exclamámos: Graças a Deus! É um génio! Venha morar na minha casa, coma a minha mulher, faça comigo o que quiser." É, pois, com alívio que o humorista vê o regresso de Lula da Silva à Presidência: "Eu não sou um indefetível de Lula, tenho críticas a fazer-lhe, mas, pelo menos, voltámos a ter um ser humano, alguém que não propaga a violência, que quer que as minorias sejam ouvidas e sejam representadas. E isso já é uma grande diferença."

Filho de um político (antigo deputado federal, hoje milita no Partido Os Verdes) com gosto pela escrita, Fábio estudava Administração na Escola Superior de Propaganda e Marketing, quando, em 2002, se estreou em público. Aconteceu no muito popular Programa do Jô (Soares), quando, num dos intervalos de gravação, enviou um bilhete ao apresentador, explicando que gostaria de encenar um sketch de sua autoria. Teve sorte. Jô chamou-o ao palco, o jovem atrevido apresentou o seu número e foi muito aplaudido pelo público e elogiado pelo apresentador. Foi o bastante para que Fábio trocasse os estudos de Administração pelo curso de Artes Cénicas, no Rio de Janeiro. No final de 2011, Fábio e Ian SBF, fundadores do canal do YouTube Anões em Chamas, e Antônio Tabet, criador do site de humor Kibe Loco, decidiram formar uma parceria para lançar um canal com sketchs ácidos sobre a vida pública e brasileira com uma liberdade que não teriam na televisão. A eles juntar-se-iam ainda Gregório Duvivier que também era argumentista e estava infeliz com as restrições televisivas, e João Vicente de Castro, publicitário que trazia uma visão comercial do trabalho. Em março de 2012, os cinco amigos criaram o canal Porta dos Fundos, que lançaria o primeiro vídeo a 6 de agosto de 2012. Em apenas 6 meses atingiram a marca de 30 milhões de visualizações. Em Abril de 2013, este já era o maior canal brasileiro no YouTube. A 8 de setembro de 2015 o Porta dos Fundos comemorou o recorde de 2 mil milhões de visualizações em todos os vídeos publicados no YouTube, sendo o vídeo intitulado "Na Lata" "responsável " por 20 milhões de visualizações.

A chegada à Netflix, com A Primeira Tentação de Cristo, no Natal de 2019, significou um passo em frente mas também um risco acrescido. Foi a constatação para Fábio Porchat de que a religião é um dos últimos tabus: "As questões religiosas são as mais espinhosas mas temos que falar disso também, sem que, alguma vez, se incite ao ódio e intolerância", diz o humorista, para quem as reações "dizem mais sobre quem protesta do que sobre a piada em si." Dizendo-se ateu, não tem uma visão preconceituosa sobre crentes e instituições: "No Brasil fala-se muito sobre o apoio dos evangélicos a Bolsonaro e, em consequência disso, passaram a ser olhados de lado. O problema é que passaram a ser simbolizados por meia dúzia de pilantras mas isso não corresponde à maior parte das pessoas que seguem essa fé. É como se dissermos que os católicos são todos pedófilos. Sim, há pedófilos e têm de ser expostos mas a maior parte dos crentes não o são. O mesmo acontece com os evangélicos - temos de distinguir entre quem usa a fragilidade do povo em seu favor e as lideranças sérias, que ajudam muita gente a quem não chega apoio do Governo ou ajuda federal. Atuam nas comunidades, em favelas, nas prisões. Posso dizer que recebo muitas mensagens de apoio de evangélicos, incluindo de pastores." Uma década de A Porta dos Fundos mostrou-lhe, no entanto, que se a religião é um tabu, existem outros temas igualmente delicados: "Não é fácil falar de injustiça social, do autoritarismo e dos preconceitos dos ricos. Eles querem rir dos outros mas não de si mesmos."

Em 2022, ver Fábio Porchat na apresentação da série da RTP, Viagem a Portugal, foi uma surpresa para os portugueses. Baseada na obra homónima de José Saramago, o convite dirigido pelo realizador Ivan Dias, permitiu ao brasileiro juntar ao gosto pelas viagens, o carinho por Portugal e a admiração pela obra do único Nobel da Literatura da lusofonia: "Quando o realizador me chamou, eu disse-lhe que talvez fosse melhor arranjar um português para mas ele disse-me que seria melhor ter alguém de fora. Isto porque, embora eu tenha um carinho muito grande por Portugal, não conhecia assim tão bem e talvez me surpreendesse mais com coisas que, para um português, são banais. Convenceu-me por aí." Ao longo de 6 episódios, Fábio viajou do Minho ao Algarve, por 135 lugares, e admite que se encantou muitas vezes: "Fui muito bem recebido, mesmo pessoas que não me conheciam receberam-me nas suas casas e davam entrevistas sem criar dificuldades." O seu coração pende, no entanto, para o sossego das aldeias do interior, onde não se importava de "comprar uma casa para ler e escrever durante semanas." Isto porque Fábio Porchat também é um bom leitor: "Gosto muito de ler Saramago, por exemplo. Tenho uma grande admiração pela capacidade que ele teve de criar uma linguagem própria e pelo modo, sempre inesperado, como aborda uma história."

O outro lado da fama e deste bom acolhimento no Brasil e em Portugal é, no entanto, a devassa da sua vida privada. Já este ano, Fábio anunciou publicamente o fim do seu segundo casamento, com a produtora Nataly Mega, acrescentando que, na origem da decisão, está o facto de ela querer ter filhos e ele não (de resto, o ator também já assumiu publicamente a impossibilidade de os gerar sem recorrer a inseminação artificial). Porquê tamanha exposição? Fábio não tem dúvidas nem hesitações na respostas: "Sou uma pessoa pública e estou consciente de que a minha vida pessoal é assunto, fala-se e comenta-se. Como foi uma separação em que havia muito amor envolvido, achei que era melhor falar abertamente em vez de alimentar o diz-que-disse." E conclui: "É o ónus da fama e é bom que seja pago nos meus próprios termos."

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