ERC reputa de "falsas" notícias sobre caso Mário Mesquita. Presidente recusa responder a deputada
Depois de acusarem o parlamento de tentativa de ingerência política, os dirigentes da ERC acabaram por ali comparecer para responder sobre o "caso Mário Mesquita". Falaram de "notícias falsas" e o presidente, Sebastião Póvoas, acabou por recusar responder às perguntas da deputada da IL: "Não quero dizer mais nada".
"Não precisamos de uma atitude de correção à atitude dos deputados. Os deputados respondem perante o povo (...). Não compete à Entidade Reguladora da Comunicação Social [ERC] vir aqui fazer um juízo de valor sobre a forma como os deputados se comportam. Temos de nos respeitar. (...) Devemos ter aqui uma atitude urbana na relação uns com os outros e que haja transparência."
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Foi assim que o presidente da Comissão de Comunicação e Cultura do parlamento, o deputado socialista Luís Graça, reagiu à recusa do presidente da ERC, o juiz conselheiro Sebastião Póvoas, em responder à deputada da Iniciativa Liberal, Patrícia Gilvaz.
A ocasião era a da audição, esta quarta-feira, do Conselho Regulador da ERC sobre o chamado "caso Mário Mesquita" - a retirada, por decisão de Póvoas, do nome de Mário Mesquita, vice-presidente da entidade, da capa de um livro (Desinformação, Contexto Nacional e Europeu) em que estava a trabalhar quando morreu, em maio de 2022. Facto que, a partir de uma notícia do DN, em janeiro, na qual algumas fontes associavam a retirada do nome do intelectual açoriano à má relação existente entre ele e o presidente da ERC, causou várias reações indignadas, incluindo do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que o considerou "ofensivo da memória" do homem a quem, no velório, outorgou a Ordem da Liberdade..
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Na sua recusa de resposta a Gilvaz, Póvoas, que no início da audição, requerida pelo PS, negara (como já fizera em entrevista ao DN a 27 de janeiro) ter existido qualquer "agravo à memória" de Mesquita, invocou o facto de a deputada, a qual na sua intervenção começou por dizer que os esclarecimentos até ali prestados pelos membros do Conselho Regulador não lhe pareciam suficientes e até "um pouco contraditórios", ter entrado tarde na audição, e portanto, no seu entender, não ter podido ouvir os esclarecimentos em causa.
Esta, qualificando a situação em causa na audição como "anómala e mal explicada", manifestara estranheza perante a "pouca aderência e disponibilidade [do Conselho Regulador da ERC] para comparecer na Comissão". Lembrando que a nomeação dos seus membros compete à Assembleia da República, que pode também, por maioria de dois terços, demitir o órgão, Gilvaz frisou que tal implica que o parlamento escrutina o regulador, e que os deputados não podem aceitar que "as entidades reguladoras tentem furtar-se aos esclarecimentos que devem dar em sede de comissão parlamentar".
A representante da IL referia-se à carta que o Conselho Regulador da ERC, do qual fazem parte, além de Póvoas, Fátima Resende Lima, Francisco Azevedo e Silva e João Pedro Figueiredo, endereçou ao parlamento a propósito desta audição, e na qual este órgão afirma não fazer sentido que os deputados peçam esclarecimentos sobre um assunto que considera caber a si "exclusivamente", afirmando até que "outro entendimento envolveria uma manifesta desconsideração" da sua "natureza constitucional (...) e, ainda, uma situação suscetível de configurar uma eventual interferência indevida" do poder político. Como o DN noticiou, o presidente da Comissão. Luís Graça, confessou ter tido de ler a carta duas vezes, por não estar a acreditar no seu conteúdo, enviando-a para o presidente da Assembleia da República para que este desse o seu parecer. Na sequência da notícia deste jornal, a direção da ERC, cujo mandato expirou em dezembro (não terá até agora havido entendimento entre os dois principais partidos quanto à lista de nomes a sufragar para a substituir) veio afinal assegurar disponibilidade para comparecer no parlamento. Tendo Póvoas, logo no início da audição, garantido: "Nós respeitamos todos os órgãos de soberania e estamos disponíveis para todas as explicações que nos sejam solicitadas".
Nem todas, na verdade: não respondeu a nenhuma das questões de Gilvaz, que insistia em saber por que motivo o Conselho Regulador tinha escrito uma missiva a falar de "ingerência política", perguntando também como reagira aquele às críticas públicas de Marcelo Rebelo de Sousa e de Ramalho Eanes (que considerou a retirada do nome "injustificável e inaceitável"), e se, tendo em conta a indignação pública com o caso, voltaria a tomar a mesma decisão. Apesar do remoque do presidente da Comissão, que deixou claro que "o deputado entra e quando entra tem todos os direitos que a Constituição lhe confere", Sebastião Póvoas manteve a sua atitude. "Não quero dizer mais nada", repetiu.
Perante o desinteresse dos deputados em fazer mais perguntas, Luís Graça deu a audição por terminada pouco depois.
"Isto é falso, OK? Não se pode falar de retirada"
Não foi o único momento em que os representantes da ERC evidenciaram irritação face às questões dos deputados. Também o vogal do Conselho Regulador João Pedro Figueiredo, na sua única intervenção na audição (como presidente, cabe a Póvoas responder às perguntas dos deputados, podendo delegar a resposta), acusou os parlamentares de partirem para aquele questionamento com base numa "notícia falsa".
"Antes de mais não posso deixar de referir que é irónico que estejamos a falar de uma questão que levantou tanta polémica pública, relativamente a um livro cujo tema é precisamente a desinformação - porque é isso na verdade que está aqui em causa", afirmou Figueiredo em tom algo exaltado. "O que está aqui em causa é a difusão de uma notícia falsa relativamente à suposta retirada de um nome de um suposto autor de um livro de uma coleção da ERC. Isto é falso, OK?"
Recorde-se que, como referido, a primeira notícia sobre a retirada do nome de MM da capa do livro foi publicada pelo DN a 23 de janeiro. Constando nela, para além da imagem da capa da obra com o nome de Mário Mesquita que se encontrava em várias livrarias digitais (incluindo a Bertrand e a Wook, nas quais essa é ainda a capa exibida), e citações de várias pessoas, incluindo de Ana Mesquita - garantindo que o livro estava praticamente pronto aquando da morte do pai -, também a assunção, por Ricardo Monteiro, diretor editorial da Almedina, editora na qual o regulador dos media publica os livros da sua coleção, de que o nome constava da capa quando o livro lhe foi entregue. "Houve uma versão em que o nome estava na capa e, a certa altura, foi retirado, por opção da ERC, que é quem coordena essa coleção", disse Monteiro ao DN.
Mais tarde, em resposta por escrito ao jornal - que a publicou em notícia de 25 de janeiro - o responsável da Almedina informou que a versão final, em termos de conteúdo, de A Desinformação. Contexto Nacional e Europeu, foi entregue na editora a 15 de julho de 2022, menos de dois meses após a morte de Mário Mesquita, que ocorreu a 27 de maio.
Esta informação contrasta com aquela que o jornal havia recebido da ERC, também por escrito, e que reproduziu na primeira notícia sobre o caso: esta garantia que a versão definitiva do livro, "miolo+capa", só foi aprovada a 6 de dezembro.
Malgrado a entrada fulminante, no resto da sua alocução perante os deputados João Pedro Figueiredo acabaria por assumir que houve de facto "a ponderação da presença ou não do nome de uma pessoa muito estimada (...), da inclusão ou não do nome dessa pessoa na capa de um livro no qual teve um papel importante enquanto supervisor."
Este membro da direção da ERC, que foi indicado pelo PS e é jurista dos quadros da RTP, viria até a reconhecer que "na verdade houve uma capa que terá circulado com o nome do professor Mário Mesquita". Mas, advertiu, "capa essa que não foi validada por quem tinha de a validar, que era a pessoa com o pelouro das publicações da ERC [e que, com a morte de Mário Mesquita, passou a ser Póvoas]. Pelo menos foi assim que fui informado disto."
É por esse motivo que, na ótica de Figueiredo, "na realidade não se pode falar de retirada".
Ainda assim, o vogal, que não deixou de proclamar ter sido da opinião de que o nome de Mário Mesquita deveria estar na capa, informou a Comissão de que a 17 de novembro lhe pediram - da parte de Póvoas - para se pronunciar sobre o assunto. Terá respondido através de um email, que leu aos deputados: "Já tinha manifestado a minha concordância com a primeira hipótese, "supervisão Mário Mesquita"; e com a segunda, "supervisão Mário Mesquita e João Pedro Figueiredo" [uma vez que, como explicou, também tinha participado na supervisão do livro]. Se nenhuma das hipóteses acima referenciadas se afigura viável, seria preferível não identificar na capa os responsáveis da supervisão." Em causa nesta resposta estaria a hipótese de ser apenas o seu nome a aparecer na capa como supervisor, hipótese que o DN, logo na primeira notícia sobre o caso, adiantou, com base em várias fontes, ter sido alvo de ponderação por parte do presidente da ERC.
"Não percebo a confusão"
Esta explicação de João Pedro Figueiredo - cujo nome surge na ficha técnica do livro, abaixo do de Mário Mesquita, como corresponsável pela supervisão -, vai ao encontro da informação que Sebastião Póvoas deu aos deputados. De facto, o juiz conselheiro deu a entender na audição ter ouvido os restantes membros do Conselho Regulador antes da decisão: "Entendi depois de consultar informalmente os colegas que, existindo vários coordenadores e supervisores seria exaustivo colocar o nome de todos e, portanto, optou-se por seguir o modelo de não ter o nome na capa".
Já os restantes vogais, Fátima Resende Lima e Francisco Azevedo e Silva, confrontados pela deputada do PS Rosário Gamboa com o facto de perante o DN, em janeiro, quando o livro já estava impresso e a polémica instalada, se terem demarcado da decisão de Póvoas, tiveram alguma dificuldade em explicar-se.
Francisco Azevedo e Silva narrou ter "acompanhado a feitura do livro à distância", através de conversas com Mário Mesquita, e que "relativamente à capa achei que existia um racional para o nome [dele] estar na capa. Ter sido o impulsionador da coleção, ter sido o último trabalho a que estava ligado e achava eu que teria estado a acompanhar o livro (...). A dado momento foi-me dito que havia outros colaboradores que tinham estado tão envolvidos na feitura como o Mário Mesquita. E perante essa questão não me passaria pela cabeça, nem na ERC nem nesta comissão nem em lado nenhum, pedir aos outros autores que omitissem o seu nome da capa do livro."
Não foi pelos deputados perguntado a Azevedo e Silva em que altura lhe foi dito aquilo que o fez mudar de ideias, mas tendo em conta o que Sebastião Póvoas disse na audição - que "os colegas" foram "consultados informalmente" - teria de ter sucedido antes de ser comunicada à editora a capa definitiva. Ora a ser assim é bastante bizarro que a 26 de janeiro, quando o DN lhe perguntou qual a sua posição sobre a retirada do nome de Mário Mesquita da capa do livro, se essa retirada foi discutida pelo Conselho Regulador, e caso afirmativo se todos estiveram de acordo com ela ou houve oposição de alguém, este ex subdiretor do DN (na direção de Fernando Lima, em 2004), e ex chefe de gabinete de Manuela Ferreira Leite enquanto presidente do PSD, tenha respondido: "A minha posição foi, obviamente, que o nome de Mário Mesquita estivesse na capa."
Tendo em conta que no momento desta resposta o livro já estava impresso e à venda, e tinham saído já várias notícias, no DN e noutros meios, sobre a retirada do nome de Mesquita da respetiva capa - existindo até uma nota pública de repúdio ao facto assinada por mais de 350 jornalistas, professores e investigadores -, parece haver, como apontou a deputada da Iniciativa Liberal, "alguma contradição" nesta explicação.
De novo questionado pelo DN, que lhe perguntou agora qual foi o "dado momento" em que mudou de convicção, Azevedo e Silva não o indica. Nem vê contradição alguma: "Não percebo a confusão. Defendia a referência a Mário Mesquita, tal como disse, pelas razões que referi na Comissão. Tal como afirmei também na Comissão que, ao ser confrontado com a informação de mais autorias, é para mim evidente que o princípio se mantém. Nada mais a acrescentar."
"Uma história tão simples de contar"
Fátima Resende Lima envereda por outro caminho para tentar justificar a contradição, admitindo agora ao DN que quando falou com o jornal, a 26 de janeiro, "não tinha a informação toda, obviamente."
Recorde-se que nessa altura respondera ao jornal: "Quando tomei conhecimento do assunto, manifestei total discordância".
Mas quando, então, teve a tal "informação toda"?
Na audição, Fátima Resende Lima sublinhou ter dito que "estava contra a retirada do nome de Mário Mesquita do livro" porque "na minha ideia ele tinha sido o autor da coleção." Mais tarde porém teria sido "informada de que, primeiro, o livro foi feito numa altura que não foi a melhor da vida dele e portanto a colaboração não foi a melhor", e de que "tinham sido os funcionários da ERC que tinham feito os textos e que o doutor João Pedro Figueiredo tinha feito muitas alterações nos textos. De maneira que posteriormente quando tive conhecimento de que para estar na capa tinham de estar os nomes todos, perguntaram qual a minha opinião nessa altura e então achei que em vez de pôr na capa um ror de gente, e tendo conhecimento de que havia muitas pessoas a colaborarem no livro, nesse caso mais valia não pôr nome nenhum."
Como no caso de Francisco Azevedo e Silva, o DN quis saber quando foi o momento em que Fátima Resende Lima foi informada daquilo que descreve e quando lhe terão perguntado a opinião. E como explica que em janeiro, quando o livro estava já à venda e a polémica lançada se tivesse, em declarações ao DN que não ignorava destinarem-se a publicação, demarcado da decisão de Póvoas.
Ao contrário do outro vogal, esta funcionária da Direção-Geral do Consumidor, que está na ERC em comissão de serviço desde 2012, quando foi indicada como diretora executiva desta entidade (seria depois eleita, por indicação do PSD, para o Conselho Regulador), confessa que "só na sequência da declaração que fiz ao DN é que tive a informação de que tinha havido vários autores e coordenadores. Por isso só mudei de opinião quando tive a informação que me faltava. Repare que, tal como disse na comissão, este assunto não me envolveu inicialmente. Seja como for, a decisão final foi do presidente, como, de resto, por ele foi dito na entrevista que deu ao DN."
Mas, sendo assim, como fica a afirmação de Sebastião Póvoas, perante os deputados, de que "consultou informalmente os colegas" antes da opção "de não ter nome nenhum [na capa]"? Será que os consultou apenas para ignorar as suas opiniões, já que à época todos, incluindo alguém (João Pedro Figueiredo) que alegadamente tanto teria trabalhado no livro, seriam a favor de manter o nome de Mário Mesquita na capa?
Revisitemos as palavras do magistrado na entrevista referida por Fátima Resende Lima, e que foi publicada a 27 de janeiro no DN: "A capa estava feita à revelia de quem tinha autoridade para mandar fazer a capa que era eu. Porque a capa foi feita depois da morte do professor Mário Mesquita. A primeira versão foi em vida do professor Mário Mesquita, mas se tivesse sido submetida à aprovação do professor, e ele a tivesse aprovado, eu nunca a mandaria alterar. Era um ponto ético e deontológico assente. Que eu prezo muito, e daí não me afasto. Mas ele não aprovou - se encontrar um testemunho em sentido contrário, sujeito-me a ser acareado. E o que se esquecem de dizer é que a capa não me foi mostrada, e era eu que tinha o pelouro. E fui verificar o que havia, ainda não tinha sido dado o imprimatur [ordem de impressão] daquele texto, e eu pensei: vamos meter todos? Ainda sugeri que ficassem os dois nomes, do professor Mário Mesquita e do Dr João Pedro Figueiredo, mas o Dr João Pedro Figueiredo achou que teria dúvidas em ficar, então eu disse: o copyright é da ERC, fica só a ERC. E pronto, foi assim. É uma história tão simples de contar, que não percebo como é que se transforma isto num agravo, numa ofensa post mortem, que são as mais dramáticas em relação à memória..."
A eleição do novo Conselho Regulador da ERC, que tem sido marcada e desmarcada desde dezembro, está aprazada para 7 de junho. Sinalizando o anseio de que essa eleição enfim se realize, o presidente da Comissão de Comunicação e Cultura, Luís Graça, disse na audição de quarta-feira, como conclusão da admoestação que infligiu a Póvoas: "Espero que a ERC eleita com um novo mandato venha aqui muitas vezes."
Nota da Direção
A 23 de janeiro, o DN publicou uma notícia cujo título é "Presidente da ERC retira nome de Mário Mesquita de livro póstumo". A direção do DN mantém a notícia que publicou, uma vez que foi feita de acordo com todas as regras éticas e deontológicas aplicáveis. Cruzámos informação e foram ouvidas diversas fontes que nos confirmaram os factos, incluindo por escrito, e que nos transmitiram a convicção da veracidade da notícia. Por esse motivo a publicámos. Daí que mantenhamos na íntegra tudo o que foi publicado, repudiando a acusação, na qual não nos revemos, de que a notícia não corresponde à verdade.