Carolina Deslandes: "O feminismo não é um movimento de superioridade, é um movimento de igualdade"
Carolina Deslandes acaba de lançar Caos, o seu novo trabalho. 14 músicas de uma confusão organizada naquilo que a letrista e cantora define como "o disco mais livre" que já fez.
"Cuidado com a Carolina/ Que vem de punho cerrado". É assim que Carolina Deslandes escreveu a sua versão de A Saia da Carolina que lançou no YouTube no Dia da Mulher com milhares de visualizações em poucas horas. Mais do que um aviso, o novo álbum, Caos, lançado no dia 10 de março é um convite a conhecer os recentes anos da sua vida numa desorganização organizada para fazer o álbum sem rótulos. Em conversa com o DN a letrista e cantora fala das suas causas, do papel da mulher na cultura e na sociedade e do legado que gostava de deixar. Sem meios termos, a mulher com cara de menina avisa-nos que vai continuar a lutar pela liberdade de fazer o que mais lhe apetece.
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O que é este Caos?
O Caos é uma mistura de várias coisas, que sugere uma grande confusão num olhar menos atento, mas que é uma confusão organizada. Ou seja, nos meus outros discos havia uma sonoridade mais uniforme com uma linha mais similar, neste novo disco não. Fui influenciada pelos dois anos de pandemia e acabei por misturar canções desse tempo, canções que já tinha feito antes e que fiz depois. Foi o disco mais livre que fiz até hoje, com essa liberdade de dizer exatamente o que quero dizer da forma como quero dizer sem me preocupar em ter algo mais coeso a nível sonoro. Todas as canções são absolutamente honestas, todas elas representam um dia, um momento, um estado de espírito e essa honestidade é o fio condutor, já a nível sonoro vai para todo o lado.
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Mas é um caos em sentido pejorativo...
É meio dúbio. É caos porque é a confusão de sonoridades, mas também é caos porque é um disco que não pede licença para nada. Se tiver que dizer um palavrão, digo, se tiver de falar de coisas mais íntimas e menos felizes, falo. É criar a confusão total, é um pouco como uma anarquia interna. Não poli nada do que queria dizer. E é um disco que acompanha uma fase da minha vida que foi muito pública, com a minha separação e todo o alarido gerado em redor disso, e isso teve muita influência no tema das canções. E até isso me deu uma oportunidade de falar da minha vida na primeira pessoa, que é um assunto que parece que há quem tenha mais opinião do que eu. Mas o disco é como uma libertação e uma forma de acertar a narrativa.
Como foi o processo criativo deste Caos?
Faço muitas canções. E, mais do que cantar, o que gosto mesmo é de contar histórias. A ideia de estar a acontecer alguma coisa, num determinado momento, e de conseguir fazer uma canção sobre isso e torná-la eterna é a parte fascinante do meu trabalho. Mas não sou nada aquela pessoa que se isola para escrever ou para fazer canções, gosto mesmo é de confusão. É no entretanto da vida que componho, seja no banco de trás de um Uber, é a ouvir um fado na Tasca do Chico ou a meio de fazer o jantar. Não paro a vida para compor. E esse processo tem sido muito parecido em todos os discos, nunca decido o que vou compor para um disco por causa de um determinado conceito. Começo a fazer canções, e quando acho que tenho canções suficientemente boas e vejo o que têm em comum tudo acaba por fazer sentido.
"Este é o disco mais livre que já fiz."
E agora vem aí a digressão.
Sim,já temos muita coisa programada, mas há três concertos que tenho de sublinhar: o primeiro vai ser no dia 26 de março no Convento de São Francisco, em Coimbra, onde vou cantar o novo disco pela primeira vez. E depois o Altice Arena no dia 30 de novembro e Super Bock Arena, no Porto, no dia 7 de dezembro. Acho que sou a primeira mulher da música pop portuguesa a fazer um Altice Arena a solo. É um sinal dos tempos, um sinal de mudança e fico muito contente de estar a abrir essa porta. E esta é a prova que já não temos de pedir licença. É entrar e conquistar um espaço com mérito, com trabalho, com consistência e profissionalismo. E acho que finalmente estamos a construir o lugar de destaque que merecemos. Estamos num país em que as mulheres vistas como letristas é algo muito recente. A mulher era sempre vista como a intérprete e havia sempre um homem que era o responsável pelo sucesso. Ou era o produtor, o letrista, o compositor..., parece que assusta muito a ideia que uma mulher sozinha pensa, que sozinha toma as decisões, e pode ser cabeça de cartaz e fazer uma arena. Os homens fazem tantas arenas e tantos trabalhos com grande dimensão e com tanto destaque há anos...
E para além dos concertos e de encher arenas, o que se pode fazer para que exista mais igualdade para as mulheres na cultura?
Primeiro é termos consciência que não é uma missão das mulheres, mas sim de todos. O feminismo não é um movimento de superioridade, mas de igualdade. E a igualdade tem de ser preocupação de toda a gente. Os homens também devem ter essa preocupação para podermos educar as nossas filhas num mundo livre e justo. A minha versão da música Saia da Carolina é sobre isso: o que podemos fazer? É deixar de associarmos as mulheres a um estereótipo, é não ficar chocados com coisas que as mulheres estão a começar a fazer e que os homens já fazem há anos. É falarmos das conquistas profissionais de uma mulher e não estarmos mais preocupados com a sua vida emocional ou se está bem ou mal vestida.
"É no entretanto da vida que componho, seja no banco de trás de um Uber, a ouvir um fado na tasca do Chico ou a meio de fazer o jantar. Não paro a vida para compor".
São ideias préconcebidas da sociedade?
Tive uma educação muito patriarcal, e acredito que a maioria das pessoas da minha geração também tenha tido. E apesar de sermos um Estado laico, vivemos com a sombra dos ideais católicos em relação ao divórcio, à sexualidade, à opinião e a tudo. Cresci a ouvir dizer que tinha de saber cozinhar porque os homens se conquistam pelo estômago... a ideia de ser recatada, delicada, responsável pelo lar. E da "sorte" de se ter um marido que ajuda na casa? Como é que alguém ajuda alguém onde também vive? É uma responsabilidade que deve ser repartida. Mas isso vem de trás, e mesmo que já se venha tomando consciência do que tem de ser mudado já se começou a cair num lugar em que quando se fala de feminismo, muitos homens reviram os olhos. Cada vez que se fala de progresso e evolução o contra-argumento é sempre uma caricatura medieval daquilo que é o feminismo, que as mulheres agora querem tudo e que agora estão sempre chateadas com tudo. Sim, estamos chateadas e com razão!
Mas mesmo no setor da cultura, que é um meio com mentes mais progressistas, ainda se passa isso?
Cada vez menos, mas ainda existe. Há uns oito anos quando tocava num festival era raro ter outra mulher a dividir o cartaz. E agora já começa a haver mais mulheres nos cartazes, nas nomeações para prémios, etc.. Mas até ficar equilibrado ainda vai demorar o seu tempo. Na música só o fado tinha mais mulheres do que homens, de resto é sempre uma luta. Se uma mulher faz um videoclipe onde tem contacto físico com um ator, cai-lhe todo o mundo puritano em cima. Isto quando os homens fazem videoclipes em tronco nu e com várias mulheres, o que é visto como natural...ou seja, sim na cultura também existe.
"Acredito que daqui a uns anos vamos olhar para músicas que saíram nos últimos anos e na forma como falam das mulheres como algo inconcebível".
Para além do feminismo e da igualdade entre géneros há outras causas que vêm à baila nas canções.
Sim, falo muito de saúde mental, de distúrbios alimentares e desta obsessão com a perfeição do corpo da mulher. Não gosto de apontar para as redes sociais, porque elas são apenas uma consequência, mas há muitas capas de revistas com setas a apontar para as celulites, para as caras desmaquilhadas..., portanto tudo aquilo que sinto que tenho informação suficiente e legitimidade para falar, falo nas minhas canções. Esta questão da igualdade de género e o romper o molde é algo que me é muito próximo porque sempre me senti aquém das expectativas por não cumprir esses requisitos. Comecei a tatuar-me muito nova, estou tatuada dos pés à cabeça, sempre gostei de vestir roupa larga, sou muito efusiva a falar, rio e falo alto. E havia sempre aquela coisa para ser mais feminina, mais elegante, ser mais delicada. E comecei a pensar a razão dessas coisas todas. Vejo os homens da minha família a rir aos berros, a expressarem-se na sua plenitude e liberdade. Por isso peguei na Saia da Carolina porque nela a Carolina dança e tem de estar de saia, e as mulheres têm de ter cuidado... tenham é cuidado comigo!
Mas ao mesmo tempo que se quebram barreiras, há muita música, e alguma feita em Portugal e muito popular, com letras misóginas, machistas... como é que lida com isso?
A única coisa que faço é escolher não consumir esse tipo de música. Por muito que a melodia seja boa e que ponha toda a gente a dançar, não faz sentido. Não faz sentido pelas letras e pela forma como a mulher é retratada. Em última instância, a forma como se aborda e olha para um determinado assunto é sempre o reflexo da educação que se teve, e acho que é só isso, há pessoas que vão precisar de mais duas ou três gerações para perceberem melhor. Acredito que daqui a uns anos vamos olhar para músicas que saíram nos últimos anos e na forma como falam das mulheres como algo inconcebível. Principalmente no RAP, onde desde sempre se fala muito da mulher como um objeto sexual. O RAP tem coisas maravilhosas, inseriu a política dentro das suas letras, e tem o papel de trazer a rua para o palco, que é fundamental, tal como o fado. Mas depois perde-se no lado da luxúria, dos carros que têm, do ouro ao pescoço, da grande mulher que têm ao lado mas que é um troféu. Para quem está atento e informado isso já caiu num lugar de caricatura e gozo. Mas há muito trabalho dos pais em relação aos mais novos para alertarem sobre o que ouvem. E não penso que tenha a ver com esses artistas serem mal-intencionados, são sim desinformados.
Faz parte de uma geração que consome melhor do que as anteriores a musicalidade da língua portuguesa.
Sem dúvida, em vivi em Inglaterra, falo bem inglês, adoro ouvir músicas em inglês, mas não é igual dizer I love You do que Amo-te. E nunca será igual. Vivemos uma boa fase de sermos orgulhosamente português e a língua ser uma coisa que se canta com orgulho, que é diferente de tudo o resto e que não queremos esconder essa diferença, mas sim edificá-la. Cada vez mais temos mais orgulho no que é nosso, o Fado e o Cante Alentejano são património mundial. É nosso! Portanto, tem havido essa busca daquilo que é nosso culturalmente e misturar isso com música contemporânea. Leio muito e sou completamente apaixonada por poesia portuguesa e isso influencia muito a forma como escrevo.
E quem é que ouve Carolina Deslandes?
Não sei. Desde o meu último disco, Casa (2018) há muita gente diferente. E esse era o meu objetivo: uma família inteira gostar e ninguém ter de fazer um frete por me ouvir, do filho mais novo à avó. E acho que isso acontece. Se acontece em todo o lado? Não. Porque sou uma pessoa que ou se gosta muito ou não se suporta. Há quem não aguente o meu timbre de voz, a minha personalidade, e não me ouvem. Mas acho que quem me ouve, fá-lo com muito carinho. Sei sim que não tenho um público adolescente, vou fazer 32 anos, tenho filhos e tenho dois posts no Tik Tok... (risos), não sou aquela pessoa cool, a par das tendências.
Em termos musicais, quão diferente é hoje a Carolina comparada com a do primeiro disco (Carolina Deslandes, 2012)?
Não é muito diferente, mas nessa altura tinha medo. No meu primeiro disco trouxeram-me não sei quantos compositores e letristas para compor e escreverem para mim. E achava que era assim que se fazia... eu que tinha cadernos cheios de letras e poesia e canções. Mas isso só aconteceu no meu primeiro disco. Fui perdendo o medo. E como não vou ficar cá para sempre, não quis deixar de ter na minha obra coisas que quero dizer de certa forma com medo de ser mal interpretada. Porque, se alguém te quiser interpretar mal, vai fazê-lo, ou por um post nas redes sociais ou por uma presença num programa. Por isso, nunca vou deixar que isso comprometa a minha música. Mas se me perguntares se sou uma intérprete e compositora diferente? Sim, sou . A minha voz mudou. Mas aquilo que quero é o mesmo que queria há 12 anos.
Deixar um legado? O que gostava que ficasse?
Em primeira instância o amor pela nossa língua. O escrever música pop em português sem preconceitos. Poder ser um pouco de tudo dentro daquilo que faço e cantar aquilo que me apetece com liberdade e propriedade. E também romper estereótipos. E gostava de deixar o legado de liberdade da mulher poder cantar o que quiser, escrever o que quiser e fazer o que quiser.

Caos
14 músicas
Sons em Trânsito
filipe.gil@dn.pt
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