Aqueles que nos cancelam

Depois de ter passado ao lado no Festival de San Sebastián, Arthur Rambo, de Laurent Cantet. estreia-se em Portugal em simultâneo com o seu país de origem, a França. Uma história de um cancelamento cultural.

O caso Medhi Meklat abalou a sociedade francesa. A história de um jovem escritor de sucesso vindo do subúrbio que perde o estado de graça depois do meio intelectual francês descobrir os seus tweets com uma personagem provocadora que difunde ódio racista e aplaude os terroristas. Laurent Cantet, realizador da Palma de Ouro A Turma, inspira-se livremente neste affaire e faz uma reflexão sobre os males das redes sociais nesta atual sociedade francesa embalada com excesso de ruído panfletário...Um Cantet nada inspirado num projeto capaz de levantar questões mas onde a força do "tema" parece ser sempre mais interessante do que a própria vibração das questões dramáticas do interior do filme.

O Medhi desta ficção é Karim, alguém cujo talento de escritor é reconhecido pela elite intelectual francesa: vai a talkshows, tem um dos seus livros fadado para ser adaptado ao cinema e mantém uma presença na sua comunidade no seu antigo banlieue. Como se não bastasse, é feliz com a sua namorada branca e tem um futuro risonho. Mas em plena festa da sua editora a bronca rebenta: descobre-se que Karim é também Arthur Rambo, personagem do tweet responsável por posts com mensagens de ódio tão misóginas como antissemitas. O jovem desculpa-se por ter criado um vilão irónico virtual, de tudo ser apenas uma performance de provocação. Desculpas que não convencem os media e as próprias redes sociais. Num abrir e fechar de olhos, Karim é vítima desta cancel culture. Muito concretamente, é linchado pela imprensa, abandonado pela editora e esquecido pela própria comunidade de descendentes árabes.

Cantet, além de oferecer um comentário sobre esta praga dos cancelamentos, está a filmar uma queda, uma queda de uma coqueluche numa França de hoje que é igual a muitas sociedades europeias, em especial a nossa, onde é fácil surgirem julgamentos morais em coro e à boleia do politicamente correto. O filme começa com um ritmo e uma gravidade entusiasmantes mas à medida que o drama chega ao seu ponto de clímax parece que o guião do filme entra numa espécie de indecisão, como se a agonia de Karim fosse um ponto de não retorno. Depois, os outros temas como a meritocracia e a ascensão social são degustados com uma insipidez que mete dó, quase como se Cantet estivesse a bater no ceguinho. É um daqueles casos em que o tema é sempre melhor do que o filme... Arthur Rambo torna-se mais cedo do que devia num amontoar de queixinhas naïf.

Não é por acaso que em San Sebastián e no TIFF de Toronto tenha passado ao lado, mesmo quando na teoria está tudo certo ou não fosse um conto de como o vício nas redes sociais nos deixa loucos.

No limite, estamos na presença de uma obra com problemas de aderência, um filme com um potencial descomunal mas filmado sem alma nem com carga dura para aguentar as questões da islamofobia que deixa no ar. Arthur Rambo deveria ser o pesadelo para nos fazer acreditar que isto de ser cancelado pode acontecer a qualquer um de nós, mas fica sempre mais perto da mera curiosidade da distância, algo como isto só acontece aos outros...

dnot@dn.pt

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