Cultura
17 maio 2022 às 16h48

"Vortex é o meu filme mais próximo da realidade"

O "enfant terrible" de Irreversível, Gaspar Noé, regressa esta semana com Vortex, filme onde encontra o tempo que o cinema do real pede. Uma obra sobre um casal a morrer à nossa frente. Um casal composto pelo improvável Dario Argento e pela mítica Françoise Lebrun. Noé conta-nos como um acidente cerebral levou-o a esta revolução no seu cinema.

De cineasta de culto e ligado aos excessos para nome respeitado por uma cinefilia mais pura. É o que está a acontecer a Gaspar Noé, o argentino radicado em França que depois de Vortex mudou o ângulo do seu cinema. Em vez da violência e do sexo radical, agora a acalmia numa história filmada em "split screen" ( o ecrã é dividido literalmente a meio) sobre o encontro de um casal de idosos com a morte num apartamento de Paris. Choque filosofal sobre os horrores da velhice e do nosso fim. Depois de ter sobrevivido a uma hemorragia cerebral, Noé, aos 58 anos, continua com um ar alucinado, mas o cineasta de Irreversível parece um homem mais apaziguado, pelo menos em San Sebastián, onde falou ao DN.

Em Cannes, na sessão oficial no Teatro Debussy, a reação do público foi de histeria invulgar. Além do mais, nunca foi tão consensual com os críticos. Estava à espera que Vortex provocasse este efeito?
Trata-se de um filme muito tocante porque aborda algo muito universal. Qualquer pessoa que tenha mais de 40 anos e cujos pais ou avós sejam de uma certa faixa etária avançada acaba por se identificar. Aliás, é uma obra para todo o tipo de público. Este é o meu filme mais próximo da realidade e algumas pessoas até me dizem que é a coisa mais violenta que fiz no sentido de mostrar como a vida não serve para nada. Tudo o que este casal construiu desaparece e fica em cinzas.

Em que altura deste processo percebeu que tinha de ter dois pontos de vista, duas câmaras em simultâneo?
Gosto do "split-screen"... Ter duas personagens que estão a falar em close-up permanente é mais parecido com a experiência da vida real do que os planos de corte. Pensei que para Vortex cada membro deste casal deveria ser seguido por câmaras diferentes. Só não sabia que iria ser sempre assim até ao fim. Nos primeiros dias ainda rodei cenas apenas com uma câmara, depois vi que não colava com o resto. Este processo do ecrã dividido torna tudo mais real. Ao aceitarmos o processo, tudo se encaixa mais livremente...

Como foi tornar um apartamento num universo de cinema? Tudo quase se passa lá...
Tinha um apartamento vazio e depois foi enchê-lo. Comprámos livros, criámos as fotos e parece mesmo que alguém lá vive. As pessoas chegavam ao local e pensaram que era um apartamento que existia já assim! Funciona como uma personagem.

Diz-se que o argumento tinha poucas páginas...
Só três. O Clímax também só tinha sete, sou adepto do tratamento, algo que tem tudo o que está em cada cena exceto os diálogos. Por exemplo, basta colocar: "casal tem a discussão sobre a dependência de heroína do filho. Ela fica zangada e bate com a porta do frigorífico com força", coisas assim. Depois, tal como uma sinopse, tudo é numerado.

Depois desta experiência o seu cinema vai mudar?
Estou farto de ter o pessoal da caracterização ou do guarda-roupa a perguntar-me coisas. A dada altura tenho umas cinquenta pessoas sempre a fazer-me perguntas, caramba! Gostaria de tentar o documentário, tenho é de encontrar o tema certo. Talvez estar numa serra apenas com um tipo de som e a encontrar pessoas de um hospital psiquiátrico. Não quero que as pessoas simulem a realidade, apetece-me apenas filmar algo da vida real. Mas demora muito a encontrarmos esse tema certo...Por outro lado vou querer pôr tudo o que o cinema permite: montagem, música, etc. É preciso criar algo, embora a última coisa que queira é forçar a realidade com narrativa trazida por mim.

Isto da hemorragia cerebral também o modificou como cineasta, certo?
Sim, andava a farrar demasiado...O meu cérebro não aguentou. A sorte é que senti a hemorragia e consegui pedir ajuda no bar em frente à minha casa. Tive muita sorte em sobreviver, mas estive a morfina durante um mês. No hospital disseram-me que poderia morrer mas nem fiquei com nenhuma lesão cerebral. Quando se está próximo da morte pensamos em muita coisa. Eu, por exemplo, fiquei inquieto acerca de quem ficaria a tratar das minhas cenas, da minha confusão. Não queria também que ficassem tristes por ter partido.

Nesta lição de confronto com a morte somos convidados para entrar dentro de um apartamento onde um casal vive os seus últimos dias. Ela com demência, ele também muito próximo da morte. Dois idosos confrontados com uma ideia de fim que é também uma ideia de vazio, de esquecimento.

O cerimonial de Gaspar Noé tem a habitual carga pesada que já conhecemos de filmes como Irreversível ou Love, só que desta vez fita e provoca a morte com duas câmaras de olhos bem abertos.

Há quem fique incomodado por todo este sofrimento escarafunchado, embora haja uma honestidade nesta ante-câmara da morte que faz toda a diferença. Quase como se estivéssemos diante de uma experiência reativa de lidar com a morte. A morte no momento, no real... Faz lembrar o inferno de Amor, de Michael Haneke, mas é outra coisa. Um pacto sobre o desconforto.

Tópicos: Cinema