Cultura
17 setembro 2021 às 22h58

Sharon Stone: A mulher que viveu duas vezes

Aos 63 anos, através de um livro autobiográfico, Sharon Stone quer que se saiba que a sua carreira não pode ser reduzida à personagem que interpretou em Instinto Fatal - e tem boas razões para o fazer.

No dia 13 de setembro, realizou-se a tradicional, sempre exuberante gala do Metropolitan Museum of Art. Acontecimento obrigatório no calendário da moda, o seu objetivo principal é a angariação de fundos para o Anna Wintour Costume Center, instituição que integra a estrutura do museu, vocacionada para a celebração do vestuário, seus mestres, tendências e mitologias. A iconografia do evento reparte-se, também tradicionalmente, entre os consagrados e os que, pela primeira vez, sobem a escadaria do museu, radiantes por se submeterem ao ritual dos fotógrafos.

Ora, este ano, quem foi a grande estreante na Met Gala? A resposta mais óbvia será Billie Eilish - ainda antes de celebrar o 20.º aniversário (em dezembro), a cantora de Happier Than Ever surgiu na alta roda da moda com uma sofisticada recriação do visual e da pose (e também de um vestido, claro!) de Marilyn Monroe. Mas não estava só: outra estreante era Sharon Stone.

Figura emblemática da história de Hollywood, estrela planetária desde Instinto Fatal (1992), Sharon Stone não parece encarar os faustos da moda como uma atividade de obrigatória regularidade. Feliz por, aos 63 anos, poder usar um austero e super-elegante vestido negro, com discretas estrias brilhantes, concebido pelo estilista Thom Browne? Sim, sem dúvida. Mas sem deixar de dar conta do seu sentido prático. Em declarações à W Magazine (em reportagem nos bastidores da gala) fez assim um esboço de auto-retrato: "Sou muito aquele tipo de rapariga que se levanta, lava a cara com água e veste o que tem ali à mão..."

Tão descomplexada ligeireza está longe de poder servir de símbolo da vida de Sharon Stone. Contrariar os lugares-comuns - e a futilidade que, por vezes, a eles se cola - terá sido uma motivação essencial para o livro autobiográfico que recentemente publicou: A Beleza de Viver Duas Vezes (ed. Guerra e Paz, Lisboa, 2021). Porquê duas vezes? Porque, de uma maneira ou de outra, a hemorragia cerebral que sofreu em 2001 foi mais, muito mais, do que um acidente de saúde: implicou um processo doloroso e complexo de recuperação e terapia, como quem refaz a sua identidade a partir do zero. Com ironia q.b. - afinal de contas, o capítulo que abre o livro, evocando os primeiros momentos no hospital, intitula-se "A morte cai-me tão bem".

CitaçãocitacaoInstinto Fatal deixou-lhe a herança, e também o assombramento, do cliché de "musa do sexo", sendo A Beleza de Viver Duas Vezes, em parte, um exercício de libertação dos respetivos efeitos (públicos e privados).

E não deixa de ser desconcertante, para não dizer obsceno, que haja toda uma linguagem mediática que continue a reduzi-la à personagem que interpretou em Instinto Fatal (1992) e à respetiva cena do lendário "cruzar de pernas"... que, aliás, ela recorda como motivo de sério conflito com o realizador Paul Verhoeven.

Sharon Stone é uma lutadora: com energia e convicção, transparência e sinceridade, apropria-se da sua própria história, ainda que nem sempre evite o tipo de generalizações com que alguns homens se referem às "mulheres" (e algumas mulheres aos "homens"). Assim, por exemplo, recorda como Instinto Fatal foi arrasado pelos "críticos", sublinhando que "agora, mas só agora, quando vou a eventos é que vejo que existe um certo respeito por esse filme", sinal de que, em 1992, a imprensa portuguesa não fazia parte dos seus hábitos de leitura... Enfim, é um detalhe sem importância.

Instinto Fatal deixou-lhe a herança, e também o assombramento, do cliché de "musa do sexo", sendo A Beleza de Viver Duas Vezes, em parte, um exercício de libertação dos respetivos efeitos (públicos e privados). Na sua ânsia de verdade, Sharon Stone evoca até a memória traumática de um aborto que resultou da relação com o "primeiro namorado a sério" (referido apenas como D.). E recorda o que aconteceu depois da ruptura: "Ao fim de algum tempo, abriu uma unidade local de planeamento familiar, onde me fui instruir sobre controlo de natalidade e ter algum aconselhamento. Foi isto, acima de tudo o resto, que me salvou: que houvesse alguém, qualquer pessoa, que pudesse falar comigo e educar-me. Nunca ninguém o fizera."

Não deixa de ser irónico que aquela que é, para todos os efeitos, uma verdadeira star do firmamento de Hollywood tenha começado o seu trabalho em cinema assumindo um pequeno papel num filme que funciona como metódica desmontagem do próprio cinema como máquina de ilusão e artifícios: Stardust Memories/Recordações (1980), de Woody Allen, um retrato muito "felliniano" (a comparação com Oito e Meio, lançado em 1963, é inevitável) de um cineasta enredado no labirinto das suas memórias.

Sharon Stone recorda com muita simpatia essa experiência. A sedução da sua presença, luminosa e misteriosa, nada intimidada pela câmara, parecia garantir-lhe um lugar na galeria de herdeiras das clássicas heroínas românticas à maneira de Alfred Hitchcock (o mestre do suspense morreu no ano de lançamento de Stardust Memories). O certo é que se seguiu um ziguezague por títulos que, de uma maneira ou de outra, se limitavam a integrá-la como trunfo "decorativo" decorrente da sua anterior atividade como modelo. Inclusive nas mais medíocres variações sobre o conceito de "grande aventura" que tinha sido relançado, em 1981, por Steven Spielberg, com Os Salteadores da Arca Perdida - foi o caso de As Minas de Salomão (1985), débil aventura exótica em que contracenava com Richard Chamberlain, eterno Dr. Kildare da série televisiva dos anos 60.

Dois filmes fariam a diferença, ambos assinados por Paul Verhoeven. Instinto Fatal foi o segundo, uma vez que, dois anos antes, sob a direção do cineasta holandês, tinha já participado em Total Recall/Desafio Total, insólito objeto de ficção científica, inspirado num conto de Philip K. Dick. A liderar o elenco surgia um ator que atravessava a sua época de máxima popularidade e sucesso nas bilheteiras de todo o mundo: Arnold Schwarzenegger.

Dir-se-ia que a carreira de Sharon Stone se foi definindo através de um jogo paradoxal: por um lado, a inevitabilidade de lidar com a pressão industrial, perversamente mediática, para "repetir" a personagem de Instinto Fatal; por outro lado, a tentativa de fuga à sua própria "formatação", apostando em projetos muito variados resultantes de escolhas arriscadas, ainda que nem sempre muito felizes.

Entre os filmes mais consistentes que protagonizou logo após Instinto Fatal estão Encruzilhada (1994), de Mark Rydell, versão americana do drama francês As Coisas da Vida (1970), de Claude Sautet, e Rápida e Mortal (1995), de Sam Raimi, western revivalista obviamente em tom feminino. Pelo meio encontramos coisas como O Especialista (1994), policial em que Sharon Stone e o seu companheiro de aventura, Sylvester Stallone, pouco mais fazem para lá de ilustrarem os seus próprios clichés comerciais.

Até que chegou um filme bem diferente: Casino. O retrato dos bastidores da máfia na gestão do jogo em Las Vegas, na década de 1970, é por certo um dos momentos altos da filmografia de Martin Scorsese. Mais do que isso: trata-se de um exemplo hiper-sofisticado da máquina de produção de um grande estúdio de Hollywood (Universal Pictures) que, escandalosamente, foi quase ignorado nos Óscares referentes à produção de 1995. Quase, de facto... O filme obteve uma única nomeação e foi, na categoria de melhor atriz, para Sharon Stone (a estatueta dourada seria entregue a Susan Sarandon, em A Última Caminhada, de Tim Robbins).

Sharon Stone interpreta Ginger McKenna, mulher do mafioso Sam Rothstein, personagem que Robert De Niro compõe num registo de perturbante ambiguidade, cruzando contenção e violência. Ginger possui o fulgor e a vibração de uma figura genuinamente trágica, justificando um cândido reconhecimento: se mais nada tivesse acontecido na sua carreira, a Sharon Stone bastaria o seu trabalho em Casino para ter direito a um lugar de destaque na história moderna de Hollywood.

De então para cá, a sua carreira de atriz continuou a ser marcada pelo equilíbrio instável das escolhas, incluindo o projeto francamente infeliz de fazer um Instinto Fatal 2 (2006). Além do mais, o filme, dirigido por Michael Caton-Jones, mostrava-se incapaz de retomar aquela que era a fundamental linha de força do original: revisitar as contradições do masculino/feminino, explorando matrizes clássicas do thriller tingidas de sarcasmo moral.

Em paralelo, vamos encontrando Sharon Stone em projetos francamente originais, desafiando modelos cinematográficos ou televisivos, como era o caso da mini-série Mosaico (2018), de Steven Soderbergh: uma surpreendente teia policial da qual foi produzida também uma versão interativa para funcionar como aplicação de smartphones.

Hoje em dia também conhecida, e reconhecida, pela sua participação em importantes campanhas humanitárias, em particular na luta contra a sida - foi distinguida, em 2013, com o chamado Peace Summit Award, atribuído pela cimeira de laureados com o Nobel da Paz -, Sharon Stone é a ilustração viva do conceito de estrela na idade das comunicações em rede e da pedagogia que, apesar de tudo, tal estatuto pode envolver. O seu livro termina mesmo com uma lista de "contactos úteis" para quem é "vítima de violência sexual ou doméstica". No Instagram, a sua conta tem mais de dois milhões e setecentos mil seguidores.

dnot@dn.pt