Cultura
25 maio 2023 às 22h05

Rabo de Peixe ou a Netflix à portuguesa

A ficção portuguesa dá-se bem com o streaming? O tira-teimas está aí a partir de hoje na Netflix com Rabo de Peixe. O seu criador e realizador, Augusto Fraga, conta como se lembrou desta história que parece demasiado boa para ser verdadeira: centenas de quilos de cocaína a dar à costa no mais problemático dos locais de São Miguel, Açores...

Rui Pedro Tendinha

Em Cannes há um filme que encena uma reunião de um cineasta com três executivos da Netflix. O filme chama-se Il Sol Dell"Avvenire e é uma obra magnífica do grande cineasta italiano Nanni Moretti. Claro que há escárnio nessa sátira, sobretudo quando o discurso dos representantes do streaming fala em reviravoltas narrativas, arcos dramáticos e momento WTF (what the fuck). A série portuguesa Rabo de Peixe, de Augusto Fraga, não quer revolucionar nada na cartilha da Netflix mas também almeja autenticidade portuguesa e é seguro dizer que há escala de produção e de desenvolvimento da narrativa capaz de um uma dimensão verdadeiramente global. Lá está, Rabo de Peixe vai ser visto em todo o mundo.

Ficção portuguesa com meios que nunca houve. Já tinha acontecido assim com Glória, excelente exemplo da forma como Tiago Guedes conseguiu colocar tempos de cinema numa máquina que pede avanço da peripécia e outras regras para públicos distraídos (exato, quem viu Viver Mal, de João Canijo, ouve Beatriz Batarda a dizer que as séries é o cinema para gente estúpida).

Desta vez, quem fica prestes a carregar no play deste projeto produzido por Pandora Cunha Telles e Pablo Iraola vê no menu palavras de incitamento "irreverente, emocionante, realista". Realista porque se trata de um argumento a partir de um acontecimento verdadeiro em Rabo de Peixe, na Ilha de São Miguel, nos Açores, quando centenas de quilos de cocaína deram à costa nessa pequena localidade. Uma ironia dos deuses: droga no valor de milhões no cantinho mais pobre da Europa. E da cabeça de Fraga saiu uma história que inventa quatro amigos a tentar a sua sorte com o tráfico desse cabaz de cocaína perdido num naufrágio.

"Rabo de Peixe fazia parte das dezenas (talvez centenas) de projetos que tenho guardados numa pasta chamada "um-dia-gostava-de-fazer-este-filme". Algumas são ideias soltas, só de umas linhas, outras são guiões completos que nunca mostrei a ninguém. Quando a Netflix e o ICA lançaram o concurso de guiões, estava isolado com a minha família nos Açores, logo no início da pandemia. Além de aprender a fazer pão, decidi começar a escrever. Não tinha grande esperança em ser um dos seleccionados, porque sou realizador antes de ser guionista, mas talvez Orson Welles tivesse alguma razão quando dizia que "não há maior autoridade no mundo que a ignorância". Escrevi a série que eu gostava de ver, sem grandes preocupações de estrutura, mas com personagens que eu adorava e um plot dinâmico. Era uma história incrível bem conhecida pela população açoreana", revela ao DN Augusto Fraga, nome mais associado à publicidade.

Para além desse ritmo que a ficção do streaming pede, a série tem os meios de produção que permitem uma respiração ampla de cenários e de situações. E tem atores que dão credibilidade a tudo, em especial um José Condessa de uma energia impactante, um Albano Jerónimo tremendo como vilão, uma Maria João Bastos subtil como mulher da lei e, sobretudo, Helena Caldeira, atriz revelação, ela que enfatiza o esforço de produção: "se já é difícil ir para o interior, seja Alentejo ou Trás-os-Montes, imaginem o que foi trazer equipas técnicas e equipamento vasto para os Açores para fazer uma série sobre algo que se passou lá... Creio que é muito importante apostar nos Açores". A atriz também contou ao DN a importância dos atores terem estado algum tempo juntos e a criarem uma unidade de grupo, ressalvando que os diálogos permitiam algum tipo de improviso: "não senti que eram hiper, mega streaming Netflix , eram bastante reais e se havia alguns palavrões no guião, confesso que nós ainda introduzimos mais alguns. Enfim, apareceram...".

Certo é que muitos vão associar as sequências com gruas e os planos gerais a um estilo estético em particular. Será que o realizador de origem açoreana está à espera de preconceitos do meio por vir da publicidade? Antes pelo contrário: "honestamente, é uma honra enorme estar no mesmo saco de realizadores como Michael Bay, Ridley Scott, David Fincher, Spike Jonze, Wes Anderson, Scorsese, Spike Lee, Alan Parker, Jonathan Glazer ou do duo de realizadores Daniels... todos eles começaram e fazem imensa publicidade. Acredito que a publicidade é um terreno de experimentação incrível, dá-nos muitas horas de realização em set e a possibilidade de viajar pelo mundo, ver e testar outras formas de trabalhar".

Como sempre neste formato de séries não se fecha a porta a uma segunda temporada. Os criadores de Rabo de Peixe estão a fazer figas, em especial Fraga: "isso significaria que conseguimos o nosso grande objetivo: chegar a um público o mais alargado possível e que a série foi relevante para esse público. Mas é também uma grande responsabilidade, nomeadamente porque não há nada mais frustrante que esperar imenso tempo por uma segunda temporada e ficar defraudado. Temos que nos surpreender a nós próprios, sem perder o ADN da série. Eu tenho imensa curiosidade em descobrir que acontece ao Eduardo e ao Carlinhos e como será a vida da Sílvia depois de tudo o que aconteceu... Pessoalmente, será um enorme prazer voltar a juntar-me com esta equipa e com este elenco que admiro profundamente". Para tal acontecer, o português, sem sotaque açoreano, só tem de não fazer urticária a milhões de subscritores da Netflix e a série aparecer no top 10 de muitos países. Não é coisa pouca...

dnot@dn.pt