Cultura
06 fevereiro 2023 às 07h00

Eduardo VIII, o rei de Inglaterra que traiu o seu povo

Durante décadas, Eduardo VIII foi visto como o homem romântico que abdicara do trono de Inglaterra pelo amor da sua vida. Mas a verdade pode ser mais sombria do que isso, como revela uma biografia agora lançada em Portugal.

Maria João Martins

Para a História recente e para o imaginário romântico de milhões, Eduardo VIII, tio-avô do atual monarca, ficou como o monarca que preferiu viver com a mulher da sua vida a ser coroado rei de Inglaterra e Imperador da Índia (título que os soberanos britânicos usaram até à independência daquele país, em 1947). No entanto, a verdadeira história de tão dramática decisão, anunciada pelo próprio através da rádio, pode ser bem mais sombria do que, durante décadas, os seus antigos súbditos e a comunidade internacional foram levados a crer. Esta é a teoria que o biógrafo inglês Andrew Lownie defende na sua obra O Rei Traidor - O Escandaloso Exílio do Duque e da Duquesa de Windsor, acabado de lançar em Portugal pela Casa das Letras.

Em conversa com o DN, o autor, que já assinou uma biografia dos Mountbatten (últimos vice-reis da Índia, com ligações familiares à casa real), e de Guy Burgess (o diplomata que, afinal, espiava para os soviéticos), não hesita em afirmar que esse lado sombrio foi de tal maneira grave que "poderia tê-lo levado a ser fuzilado durante a Segunda Guerra Mundial, não fosse ele um ex-rei, irmão do monarca reinante, o que, a ter acontecido, revelar-se-ia fatal para a sobrevivência da monarquia".

Mas comecemos pelo princípio. Nascido em 1894, quando a sua bisavó, a rainha Vitória, ainda estava no trono, Edward Albert Christian George Andrew Patrick David tornar-se-ia, na sua juventude, um príncipe de Gales popular e moderno, que gostava tanto de banhos de multidão, como de festas ao espírito dos Loucos Anos 20, na companhia do seu amigo de sempre, Louis Mountbatten.

Para desespero do pai, o rei Jorge V, também não demonstrava qualquer pressa em se casar e assegurar a sucessão, colecionando namoradas, de preferência casadas. Uma delas, Thelma Furness, tê-lo-á apresentado a Wallis Simpson, em 1934, sem imaginar sequer que, assim, mudava as vidas dos três e também a História do mundo.

É que a arrebatadora paixão do príncipe-herdeiro por esta norte-americana, casada pela segunda vez, e com uma passagem, tão turbulenta como instrutiva, pelos bordéis de Xangai na década de 1920, não era coisa que a casa de Windsor e o governo de Sua Majestade, liderado por Stanley Baldwin, estivessem dispostos a aprovar. Em Janeiro de 1936, quando Jorge V morreu e Eduardo lhe sucedeu, iniciava-se um dos reinados mais breves da História, mas também um dos mais tensos, já que o novo monarca insistia em casar-se com Wallis. Contra tudo e contra todos.

Mas a 11 de dezembro de 1936, pouco antes das 22.00 horas, percebeu-se quem ganhara este braço de ferro, quando o rei se despediu dos britânicos com uma das declarações mais famosas do século XX: "Considero que não sou capaz de carregar o pesado fardo da responsabilidade e cumprir as minhas funções de rei, como gostaria de fazer, sem a ajuda e o apoio da mulher que amo... Neste momento, demito-me totalmente dos assuntos públicos e entrego o meu dever."

Mas o que estava em causa, segundo Andrew Lownie, era muito mais do que uma embirração da ultraconservadora família real em relação a Wallis, entretanto já divorciada do segundo marido. No final de 1936, quando a sombra de uma nova guerra já ameaçava a Europa, as simpatias políticas dos dois amantes demonstravam-se bastante embaraçosas. "Na noite anterior à transmissão do duque, 500 apoiantes pró-nazis, reuniram-se no Palácio de Buckingham, entoando: "Queremos Eduardo" e "Um, dois, três, quatro, cinco, queremos Baldwin vivo ou morto", mais tarde investindo rumo a Downing Street. Na tarde seguinte, 3000 pessoas tinham assistido a uma reunião de massas em Stepney, dirigida por Sir Oswald Mosley, líder da União Britânica de Fascistas, na qual exigiu que a questão da sucessão fosse apresentada ao povo."

O comportamento dos duques de Windsor, que se casariam em França na primavera de 1937 sem a presença de qualquer membro da família dele, confirmaria, nos duros anos que se seguiram, as piores suspeitas do governo de Baldwin. É o que diz ao DN, Andrew Lownie: "Há poucas coisas simpáticas para dizer sobre os duques de Windsor. Eram desonestos, fúteis e foram continuadamente desleais ao Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial. Penso que o antigo rei, de facto, acreditava nos princípios da ideologia nazi, era fervorosamente anticomunista e pró-fascista. O mesmo acontecia com a mulher, que era muito próxima de Ribbentrop, ministro dos Negócios Estrangeiros de Hitler."

Citaçãocitacao"Os documentos nos arquivos portugueses demonstram-no. Ele era um dos banqueiros do ouro nazi, trabalhava com eles, e, por isso, a sua casa não era um lugar tranquilizante para o governo britânico."

Em Londres, o nervosismo crescia, à medida que essas ligações se tornavam evidentes. Por outro lado, escreve o autor, "havia certamente um desejo de atenção pública tanto por parte de Windsor, como da sua esposa. Ele não tinha uma vida interior para se refugiar. Visitas reais e cortesãos bajuladores eram tudo o que ele tinha conhecido. Tendo desistido do seu trono, procurava um papel e era uma presa para os que não tinham escrúpulos".

Com o desencadear da guerra entre a Inglaterra e a Alemanha, a 1 de setembro de 1939, a posição do ex-rei torna-se ainda mais delicada, como se verá num episódio rocambolesco que, no verão de 1940 (pouco depois da queda da França em poder dos nazis), terá lugar em Cascais, em casa do banqueiro Ricardo Espírito Santo, que Andrew Lownie não tem dúvidas em ligar aos interesses dos nazis, como nos diz: "Os documentos nos arquivos portugueses demonstram-no. Ele era um dos banqueiros do ouro nazi, trabalhava com eles, e, por isso, a sua casa não era um lugar tranquilizante para o governo britânico."

O mal-estar começa assim que os duques de Windsor manifestam o seu desejo de se deslocarem à Península Ibérica, com a primeira paragem na capital espanhola: "Madrid era o local da maior concentração dos Serviços Secretos ale- mães fora de Berlim e Espanha era praticamente um protetorado alemão - o general Francisco Franco devia a sua vitória na Guerra Civil ao apoio alemão."

O caso não era para menos, já que, como escreve Andrew Lownie, "no dia em que chegaram os Windsor, Eberhard von Stohrer, o embaixador alemão, enviou um telegrama estritamente confidencial a Ribbentrop relatando a chegada do casal, dizendo: "Talvez estivéssemos interessados em deter aqui o duque de Windsor e, eventualmente, estabelecer contacto com ele."

Da Espanha de Franco, o casal dirigiu-se ao Portugal de Salazar, onde, "em vez de ser escoltado para o Hotel Palácio, no Estoril, que supostamente não tinha quarto para eles, foram encaminhados para uma grande casa cor-de-rosa, em Cascais, a 27km a oeste de Lisboa, que tinha sido disponibilizada por um conhecido banqueiro, o dr. Ricardo Espírito Santo Silva."

Tal escolha não era circunstancial: "Na realidade, a orientação tinha vindo das autoridades alemãs. O dr. Espírito Santo era um agente alemão e um amigo chegado do ministro alemão em Lisboa, mas sentiu-se que o casal estaria lá apenas temporariamente - dois barcos voadores do Comando Costeiro da RAF estavam à espera no Rio Tejo para os levar no dia seguinte até Saighton Grange, em Chesire (...)."

Num memorando bastante enervado enviado a Churchill, Desmond Morton, oficial dos Serviços Secretos, escreve: "O Senhor Espírito Santo, responsável pelo banco com o mesmo nome em Lisboa, é bastante pró-alemão e um centro de propaganda pela paz (...). Ele está a movimentar somas muito avultadas em notas bancárias e títulos da Alemanha, em dólares, via Suíça para as Américas. Estas somas são quase de certeza saques alemães de países cativos."

Os britânicos suspeitam de um golpe alemão para raptar o duque e usá-lo como instrumento de chantagem contra o governo inglês e o rei Jorge VI -o que correspondia à verdade, já que fora elaborado o Plano Willi, justamente com esse objetivo -, e pressionam o antigo rei a regressar a Inglaterra, o que ele vai protelando. Em desespero de causa, Churchill chega a ameaçá-lo com o Tribunal Marcial.

Para Andrew Lownie: "Churchill pô-lo entre a espada e a parede, mas optou por enviá-lo para as Bahamas como governador. Hoje estou convencido de que se não se tratasse do antigo rei de Inglaterra, do irmão do rei em exercício, teria havido penalizações muito sérias contra ele. Muitos foram fuzilados por menos do que ele fez."

Esta nomeação, revela ainda o autor, faz-se contra a vontade de Jorge VI, da princesa Isabel e do secretário colonial, lord Lloyd, mas, a 4 de Julho de 1940, Churchill justifica a nomeação: "As atividades do duque de Windsor no continente nos meses mais recentes têm estado a causar a Sua Majestade e a mim próprio um grave mal-estar, pois as suas inclinações são bem conhecidas por serem pró-nazi e pode tornar-se um foco de intriga. Vemos como um verdadeiro perigo o facto de ele se movimentar livremente no continente."

Sentindo-se beliscado no seu muito considerável ego, o duque aceita o cargo, que considera muito aquém da sua dignidade real, e ruma ao arquipélago, então parte do Império Britânico. Aí permaneceria até ao final do conflito, transformado num poço de ressentimento, a única energia que o movia, segundo nos diz o seu biógrafo. "Era um homem muito superficial. Não tinha interesses culturais, não gostava de ler, não tinha empatia com os outros. Os seus únicos objetivos eram ganhar dinheiro, jogar golfe, bridge e ir a festas. A sua vida era muito vazia, não tinha interesse ou energia para fazer alguma coisa boa com a sua vida, o que, aliás, também acontecia com a mulher. Comparo-os muito a Harry e Meghan."

O fosso que o separava da família (incluindo a sua própria mãe, a Rainha Mary, que morreria em 1953) jamais diminuiu: "A viúva do rei Jorge VI detestava-o, acusando-o de causar a morte prematura do marido, em 1952, com apenas 56 anos. Mesmo a Rainha Isabel II sempre desconfiou muito dele, porque estava informada sobre a sua traição em tempo de guerra. Podemos dizer que a família real só se reaproximou dos Duques no final das vidas deles (ele morreria em 1972 e ela em 1986), com o objetivo de ficar com os bens deles, mas sobretudo com a preocupação de impedir que documentação eventualmente comprometedora caísse nas mãos de terceiros."

Andrew Lownie admite ao DN o seu "gosto em contar as histórias de pessoas que têm algo a esconder e que, por causa da sua posição na sociedade, obrigam os governos a ocupar-se dessa duplicidade. Tal como o antigo rei, Guy Burgess era um traidor, na medida em que trabalhou durante décadas para os soviéticos. Com Louis Mountbatten, a sua homossexualidade teve de ser ocultada porque, nessa época, era um crime público, punido com prisão, mas estamos a falar do tio materno do Príncipe de Edimburgo, marido de Isabel II...". Para além da necessidade de guardar segredos, Andrew Lownie não estabelece paralelos entre os Windsor e os Mountbatten: "Quer Louis, quer Edwina, sua mulher, eram pessoas interessantes porque tinham um casamento muito livre. Podemos dizer que ela foi mesmo uma mulher fascinante com um espírito livre, que teve dois momentos muito diferentes na vida: uma juventude privilegiada e frívola e a segunda, já na Índia, baseada na responsabilidade e no envolvimento com os outros. O duque de Windsor nunca deu essa volta e provavelmente é o que vai acontecer com Harry."

Mais fascinado por estas personagens com "ficheiros secretos" do que por aqueles a que chama os good goodies, Andrew Lownie promete ao DN que não ficará por aqui. Com uma gargalhada revela, "é bem possível que escreva uma biografia do Príncipe André."

dnot@dn.pt