Cultura
23 outubro 2021 às 22h12

"Censura de Ceausescu mudou poema de Pessoa de 'Hora Absurda' para 'Hora Irreal'"

Tem um livro de poesia publicado em Portugal graças ao entusiasmo do seu amigo Lobo Antunes, de quem é tradutor para romeno. E foi depois de ler Eduardo Lourenço que pediu asilo político, em rutura com a ditadura comunista. À conversa com Dinu Flamand, em Lisboa, cidade que o intelectual romeno descobriu nos anos 80 e à qual nunca se cansa de regressar.

Dinu Flamand foi-me apresentado por Gelu Savonea, diretor-adjunto do Instituto Cultural Romeno, em Lisboa, durante um almoço no Cantinho Romeno, na Rua Carlos Mardel. E foi a saborear a cozinha dos chamados "latinos de Leste" (O Cantinho é uma espécie de mercearia especializada, mas por encomenda serve refeições numa salinha) que ouvi, fascinado, a história deste intelectual romeno, que, num dado momento, se apaixonou pela literatura portuguesa a ponto de ter aprendido a língua, mesmo que recorra ao francês quando precisa de uma ou outra palavra para prosseguir a conversa. Da conversa à mesa resultou uma proposta minha de entrevista, um pouco sobre a sua relação com Portugal e figuras como António Lobo Antunes ou Eduardo Lourenço, e esta acabou por acontecer dias depois, nas instalações do Instituto Romeno, perto da Sé, outro cantinho romeno em Lisboa, desta vez não gastronómico mas cultural, recheado de livros de autores tanto latinos do Oriente como latinos do Ocidente. Já com o gravador desligado, fiquei ainda a saber que foi no comboio entre Lisboa e Paris, a ler três livros que Eduardo Lourenço lhe oferecera, que Flamand decidiu pedir asilo político. "Guardo sempre comigo esses três livros essenciais que ele me ofereceu: Heterodoxia, O Labirinto da Saudade e Tempo e Poesia. A leitura deles foi para mim um impulso para agarrar a liberdade."

Sei que tem um livro de Eduardo Lourenço, de 1989, com uma dedicatória para si. Mas não foi o seu primeiro contacto com um gigante da literatura portuguesa, pois não? O primeiro terá sido com António Lobo Antunes, em plena Guerra Fria, com a Roménia e Portugal em campos opostos.
Sim. O meu primeiro contacto com um gigante da literatura portuguesa atual foi, efetivamente, Lobo Antunes num encontro na Finlândia de escritores de países do Leste e escritores da Europa Ocidental, porque a Finlândia tinha uma situação ambígua, era metade moscovita, metade ocidental. Aí ficámos amigos, Lobo Antunes e eu, e ele ajudou-me a receber uma bolsa Gulbenkian em 1987, quando cheguei a Portugal. Graças a ele, conheci nessa época muitos outros grandes escritores. Entre os poetas, Fernando Assis Pacheco, Sofia de Mello Breyner. Conheci também na altura Pedro Tamen que era administrador da Fundação Gulbenkian, Nuno Júdice, e muitos outros poetas que me acolheram e que foram de uma fraternidade incrível comigo, mas eu não podia falar sobre mim porque tinha a minha família em Bucareste. Lembro-me que dei uma entrevista ao Jornal de Letras, a uma jovem jornalista à época que, mais tarde veio a ser uma grande escritora - Inês Pedrosa - e ela estava um pouco descontente porque eu não lhe dizia nada sobre o regime comunista de Ceausescu, atroz, mas tinha a família refém...

Nesse momento não tinha feito ainda a rutura oficialmente com a Roménia comunista?
Não. Fiquei alguns meses aqui em Portugal. Já tinha preparado uma antologia da poesia portuguesa, não conhecia muito bem a língua, mas, ao mesmo tempo, copiei textos da grande poesia portuguesa. Aprendi a língua e copiei sobretudo Fernando Pessoa. Dediquei-me a traduções a partir do português, traduzi Fernando Pessoa e também poetas contemporâneos. Mas voltei a Bucareste.

Conseguia publicar traduções?
Publiquei traduções de Fernando Pessoa, mas a censura comunista, que em princípio já não existia - Ceausescu tinha decretado que a censura tinha deixado de existir - censurou até um título de Fernando Pessoa, Hora Absurda, porque o absurdo parecia demasiado "absurdo" para a censura romena, assim o título passou a Hora Irreal.

Um verdadeiro absurdo...
A censura foi completamente estúpida e para salvar a página, porque era um poema grande, a redação da revista literária România Literarǎ teve de mudar o título de Fernando Pessoa. Noutra ocasião, em 1989, fui convidado para vir a Portugal, já começava a ser um pouco conhecido graças às minhas traduções para romeno, em concreto de escritores lusófonos, e foi nessa altura que conheci Eduardo Lourenço, que já tinha lido graças a O Labirinto da Saudade, e ele ofereceu-me um exemplar com dedicatória. Pareceu-lhe um pouco bizarro que um romeno lhe falasse de saudade, mas eu expliquei-lhe que a primeira vez que tinha mergulhado na espiritualidade portuguesa tinha sido quando tinha lido algures que a palavra saudade era intraduzível. Nós temos uma palavra similar - "dor" - e dizemos a mesma coisa, que ela é intraduzível, pois não significa dor. Ela é essa exceção, tal como saudade, só que nós nunca teorizámos o conceito de "dor" como vocês fizeram em torno do movimento de saudosismo, etc., etc., e que se tornou um critério da identidade nacional entre vós, mas tem a sua função como elemento imponderável, metafísico e poético, da mesma maneira e com o mesmo espectro de ambiguidade, ao mesmo tempo muito rico.

Do seu contacto com Portugal e com os escritores portugueses, encontra uma ligação especial entre os latinos do extremo ocidental e os do extremo leste?
Sim. Há uma teoria muito conhecida que fala das características da latinidade preservada unicamente nos extremos. Penso que mesmo no léxico, na sintaxe, o português e a língua romena guardaram coisas que não existem noutras línguas. Nós temos qualquer coisa de marginais que sonham sempre regressar ao centro, ao centro da latinidade. Eu sinto-me muito bem em Portugal e vivo aqui em Lisboa o máximo de tempo possível. Estou de regresso, como já estive em janeiro quando estávamos em pleno confinamento. Escrevi um diário de confinamento em Lisboa, no perímetro de um jardim que adoro, o jardim das Flores, onde tenho amigos que são pessoas do povo - Pedro, que me dá de comer, tem um pequeno bar que serve também comida, Nuno, um desempregado do bairro que é talvez, penso, pago pela administração do parque para sorrir a toda a gente, às vezes também o ajudo com uma pequena cerveja para que sorria mais.

Trabalhou como jornalista durante mais de 20 anos, sobretudo para a Radio France Internationale, depois da rutura no início de 1989. O tema era sobretudo a Roménia e a Europa de Leste. Qual é a sua opinião sobre a evolução do seu país como sociedade, como um país que fez a transição do comunismo para a democracia, mas também como um país que fez a transição da censura para uma explosão de criatividade?
A Radio France Internationale tinha várias secções nas línguas nacionais - o português também estava bem representado - mesmo do Brasil e dos países da América Latina. Nós, romenos, russos, chineses e outros dirigíamo-nos ao público dos nossos países, mas com um jornal generalista, um verdadeiro jornal de atualidades fabricado em França. Era, portanto, uma escola de jornalismo muito sério que fazia concorrência, nessa época, à BBC com grande sucesso. Tenho muito orgulho de ter feito esse trabalho durante 20 anos em Paris, era um jornalismo bilingue. Evidentemente, considero-me um privilegiado por, durante o movimento de libertação nacional que foi a insurreição romena, ter estado na primeira fila para fazer as minhas análises e transmitir a informação. Depois, há teses um pouco contraditórias sobre a origem dessa revolta de dezembro de 1989 e sobre as manipulações que se seguem. Eu penso que as confusões já existiam durante a Revolução Francesa e talvez também aqui durante a Revolução dos Cravos, como o meu amigo António Lobo Antunes tão bem descreve em Fado Alexandrino.

Mesmo com tudo isso, relativamente à insurreição que depôs Ceausescu, quando faz um balanço dos últimos anos da Roménia, acha que foi uma transição de sucesso? A Roménia atual, na União Europeia, é um país mais desenvolvido, mais culto, mais literário?
Evidentemente que fico feliz por a Roménia ter entrado no clube da UE. Imediatamente penso que foi alguns anos depois de Portugal e eu vi como Portugal aproveitou bem essa entrada e a Roménia também. Talvez nós menos do que os portugueses, porque nós vimos de longe e há ainda tropismos do comunismo que fazem com que a sociedade seja sujeita a dúvidas sobre corrupção e também manipulação, mais do que em Portugal. Na minha opinião, nós vamos aprender as lições essenciais da democracia.

Atualmente na Roménia existem as suas traduções de Lobo Antunes, de Pessoa, mas é fácil descobrir na vossa língua Eça de Queiroz, Camões, e mesmo autores mais modernos como o Nobel Saramago, por exemplo?
Existem. Nós temos uma longa tradição de tradução porque nos considerávamos marginais, portanto, privilegiámos sempre a tradução da grande literatura europeia e, sobretudo, para meu gosto, da grande literatura latina. Infelizmente, nós continuamos quase uns desconhecidos e a explicação para isso está no facto de o Muro de Berlim ter sido mais alto e mais grosso do que se diz. Não se conhecia nada sobre nós, mesmo se entre as duas guerras a presença dos romenos na Europa fosse normal, tal como a presença dos outros.

Os romenos no tempo comunista conheciam melhor a literatura portuguesa do que ao contrário?
Sim, precisamente. Mesmo hoje em dia, penso que a situação se mantém. É um pouco triste porque nós chegamos com traduções mais numerosas que as de outras épocas - há grandes clássicos que aparecem já em traduções em Portugal, nomeadamente de grandes autores que viveram cá, como Mircea Eliade e Lucian Blaga, e mesmo contemporâneos, como a antologia da poesia romena contemporânea e alguns livros meus e de outros escritores, mas tenho a impressão de que chegamos um pouco tarde. Neste momento, a literatura, ler livros, já não está na moda. Sou um pouco pessimista, porque chegámos tarde e esforçamo-nos por nos dar a conhecer num momento em que o centro do interesse já não está na literatura, na filosofia, na espiritualidade transportada pelo livro. Mas damos alguns passos para recuperar um muito longo tempo perdido.

Mas é possível para um português ler a sua poesia desde há quatro anos, quando foi publicado em Portugal Sombras e Falésias, pela Guerra e Paz, como resultado também de uma ajuda de Lobo Antunes. Foi ele que acreditou em si e se movimentou para publicar a sua poesia?
Lobo Antunes ficou desiludido com a primeira tradução dos meus poemas em português e disse que sim, que eu era um bom poeta quando pôde ver uma boa tradução. Então, tomou a decisão de escrever um prefácio para Sombras e Falésias, onde conta o nosso encontro e as nossas histórias. Ele ajudou-me de outra maneira e eu estou-lhe muito reconhecido: ele quase que me obrigou a falar-lhe sobre a minha vida na Roménia e, de algum modo, como ele era psiquiatra, fez uma análise comigo e ajudou-me a sobreviver e a ultrapassar os meus sofrimentos, mesmo que nunca me tenha pressionado para que ficasse no Ocidente, porque não podia assumir essa responsabilidade. Ninguém pode tomar a responsabilidade em nome de outro para o deslocalizar, para o tornar um imigrante, etc., etc., mas ele ajudou-me talvez mais do que isso pelo seu exemplo. Eu vivi em casa dele algumas semanas e vi como ele trabalhava. Era incrível, ele trabalhava dez horas de seguida, todos os dias da semana. Isso impressionou-me imenso. Pensei que era o exemplo absoluto e que me deu a coragem de ignorar efetivamente os tormentos do regime comunista em nome da boa literatura que me ajuda a sobreviver. Foi, para mim, um exemplo direto nesse sentido.

Dos livros de Lobo Antunes que traduziu, há um mais especial?
Fiquei muito impressionado pelo seu livro de sofrimento pessoal que traduzi antes dos outros - Sôbolos Rios que Vão - onde ele fala efetivamente da sua experiência quase diretamente, quase na primeira pessoa. Mas li todos os outros livros e fiquei sempre impressionado pela força, pela capacidade enorme de ser um espelho móvel por toda a sociedade portuguesa durante algumas décadas. É incrível, quase que não acreditamos que gigantes da estatura de Balzac, Tolstoi e outros grandes dos séculos passados não estão ainda em atividade algures junto de nós. Tenho muito orgulho em ser seu amigo.

Acredita que será possível um Nobel da Literatura para Lobo Antunes ou é uma espécie de escritor maldito para à academia sueca?
Bom, penso que ele renunciou a pensar nesse prémio que é muito caprichoso e que acho que evita os escritores que tem muito sucesso no seu tempo de vida.

Está a preparar agora uma antologia da poesia moderna portuguesa. Já escolheu alguns nomes ou é muito difícil escolher? Pessoa é sempre obrigatório?
Já publiquei sete livros de Pessoa. Sou talvez o único a ter publicado a grande maioria dos escritos de Fernando Pessoa, porque noutros casos, noutros países, há vários tradutores. Já comecei a pensar na antologia com Fernando Assis Pacheco, pois ainda tenho a lista que ele me deu com 25 ou 30 títulos, mesmo o António Lobo Antunes deu-me alguns nomes e ainda guardo comigo as sugestões deles. Entretanto, mudei de opinião e constato que há outros poetas que eu lia muito há 20 anos e que agora não estão mais na moda, por exemplo, João Pedro Grabato Dias de que eu gostei imenso e de quem já ninguém fala. Lobo Antunes perguntava-me há uns dias de que serve fazer uma antologia, quem quererá ler uma antologia da poesia portuguesa? Talvez haja perdedores que ainda sonhem, eu faço parte dessa família de perdedores que continuam a sonhar que ainda há leitores que têm o talento de ler Lobo Antunes e de ler poesia também. Atualmente é preciso ter talento para ler a boa literatura. Há uma seleção natural entre os leitores e eu não desespero. Vou fazer esta antologia da poesia portuguesa, de Fernando Pessoa a Nuno Júdice e, talvez, outros contemporâneos.

leonidio.ferreira@dn.pt