Cultura
16 outubro 2021 às 05h00

As dores de uma menina num corpo de menino

Documentário que no ano passado marcou o encerramento do Queer Lisboa, Little Girl, de Sébastien Lifshitz, chega agora aos canais TVCine, sem ter estreado comercialmente nas salas. Um comovente olhar sobre a identidade de género, a partir do caso de uma criança de 8 anos.

Um menino que diz à sua mãe "quando for grande quero ser uma menina". A história de Sasha podia resumir-se a esta confissão que fez quando tinha apenas 3 anos. Aos 4 continuava a repetir a mesma frase, e Karine, a mãe, recorda com mágoa o dia em que lhe respondeu ser impossível concretizar esse sonho. Sasha chorou como gente crescida - eram lágrimas de uma dor funda, e não uma reação passageira sem ameaça de sequelas. Depois deste episódio, acompanhado de um embaraço inicial nas lojas, a comprar vestidos para o filho, e mesmo de um sentimento de culpa (em relação ao facto de, quando ficou grávida, ter desejado uma menina), Karine libertou-se do olhar dos outros e decidiu lutar por uma infância o mais normal possível para Sasha. É ela a menina presa num corpo de menino que o documentário Little Girl (domingo, TVCine Emotion, 12h15) retrata com luminosa generosidade e calor humano.

No título original Petite Fille, esta realização do francês Sébastien Lifshitz vem na linha da sua genuína dedicação ao registo documental enquanto janela para realidades mais ou menos marginais. Imediatamente antes deste assinou Adolescents (2019), espécie de Boyhood à francesa, que segue a vida de duas adolescentes ao longo de alguns anos, e ainda antes, em Bambi (2013), fez um perfil de Marie-Pierre Pruvot (n.1935), ex-dançarina e figura icónica da vida noturna parisiense, que foi uma das primeiras transexuais em França. De alguma forma, Little Girl é um filme que completa Bambi: o realizador, tendo fixado o que Pruvot lhe disse sobre sentir-se uma menininha aos 3 ou 4 anos, quis sondar a verdade desse sentimento precoce, que contraria o lugar-comum de ser só na adolescência, em consequência da puberdade, que se manifesta a chamada disforia de género (mal-estar gerado por um conflito entre a identidade de género e o sexo biológico).

Assim, a história de Sasha surge como um delicado estudo de caso que, em vez de se deter do passado, se projeta no futuro. Entre os depoimentos da mãe, e também do pai e da irmã mais velha, Lifshitz filma a sua pequena estrela como um ser que paira sobre os dias, guardando uma tristeza que só se revela nos momentos em que as perguntas de uma médica coçam a ferida interior - é ver a expressão, simultaneamente frágil e adulta, desta criança quando se aborda o tema da sua experiência escolar.

A verdade é que a batalha da mãe Karine dá-se sobretudo nesse meio, desde logo provinciano. Ela procura no aconselhamento médico uma via para abrir as mentalidades na escola primária, já que o problema parte dos adultos, em particular do diretor e da professora, que resistem à vontade da menina de assumir, pelo vestuário, a sua identidade de género perante os colegas. Um entrave que se torna ainda mais feio nas aulas de dança que Sasha frequenta até determinada altura.

A lente de Lifshitz não anda atrás da violência destas situações, e muito menos se interessa por um discurso de ataque: as personagens tóxicas não estragam a contemplação da bolha mágica que é a família de Sasha, são antes obstáculos que vão ficando para trás à medida que o ser feminino adequa a sua aparência quotidiana ao modo como se sente. A evolução reflete-se tanto na primeira visita de uma amiga ao seu quarto de menina, para brincarem com as barbies, como num vestido novo ou num biquíni. "Estás a desabrochar", diz Karine para a filha. E ela ainda não sabe o significado da palavra.

A certa altura lembramo-nos de Uma Criança Como Jake (2018), de Silas Howard, o filme em que Claire Danes e Jim Parsons interpretam os pais de um menino de 4 anos que gosta de se vestir de princesa, refugiando-se no imaginário dos clássicos da Disney sem distinguir muito bem, digamos, o que separa o reino feminino do reino masculino. Este drama, que no fundo capta uma crise moderna de parentalidade, acaba por ser uma versão quase exclusiva dos dilemas dos adultos, com Jake a representar pouco mais do que um nome: é o vislumbre de uma fada que corre pela casa, mas a quem não temos oportunidade de aceder. Ora Lifshitz garante que Sasha é muito mais do que um nome, e para isso não precisa de forçar situações. Basta observar a maneira como ela se olha ao espelho para compreendermos a consciência que tem do seu corpo.

Para além de ser um documentário sobre uma criança que está a moldar o seu amanhã, sendo-lhe minimizado, tanto quanto possível, o sofrimento inevitável (o inferno são os outros...), Little Girl é um filme sobre a força do amor familiar, quando ele existe nestes cenários complexos. É muito comovente assistir à naturalidade com que os irmãos de Sasha brincam com ela e se asseguram de que a sua identidade é respeitada. Ao oferecer um retrato tão caloroso, Sébastien Lifshitz não está a ignorar os casos complicados de não aceitação, apenas escolheu fazer o elogio às pessoas que se regem pelas leis do afeto. Por outras palavras: aquelas que têm o coração no lado certo.

dnot@dn.pt

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