Cultura
16 setembro 2021 às 05h00

A adorável mosca de estimação de Dupieux

Uma sátira insana sobre uma mosca gigante que se torna aliada de "dois doidos à solta" numa França de gente cretina. É assim Mandíbulas, outro filme de afirmação de um cineasta não domesticável, Quantin Dupieux.

O cineasta de todas as bizarrias está de volta. O francês Quentin Dupieux já filmou um pneu assassino e um casaco serial killer. Agora é a vez de um novo desplante: a aprendizagem de uma mosca gigante na arte de roubar. O cineasta de Rubber-Pneu e 100 % Camurça continua essa senda de fazer comédia surreal à base de noções de delírio fantasista. Um humor em que as fendas do absurdo e da série Z atinge um ponto de perplexidade capaz de abalar uma certa fundação da marca da "comédia francesa".

No caso de Mandíbulas, Dupieux, também conhecido pelo seu passado fugaz como músico das eletrónicas, não dispensa um predicado de excesso. Um excesso de iconografia e a coragem de levar até ao extremo a prática de uma piada descabelada, neste caso essa doideira de vermos dois idiotas trintões a domesticar uma mosca gigante e afavelmente obediente. Jean Gab e Manu encontram a tal mosca gigante num porta bagagens de um carro que acabam de roubar. O objetivo dos dois amigos com pouco QI é ensinar a mosca a roubar, mas antes ainda têm de a esconder de um grupo de amigos que confunde Jean Gab com outro amigo. Pelo meio, há um cão devorado, um sósia barrigudo e uma rapariga que fala a gritar. Em suma, comicidade de risco sem medo do mais puro non-sense iconoclasta no qual o enfoque é um gozo a uma ideia de estupidez francesa. De alguma forma, Dupieux está a testar as possibilidades de punch line. Será que é possível fazer rir com o acaso burlesco de personagens sem neurónios? Haverá justificação para sorrir perante tonterias minimais? A verdade é que as gargalhadas que o filme provoca parecem saídas de um manifesto de performance radical, um pouco como chegou a acontecer com os efeitos de choque dos Farrelly em Dumb and Dumber- Doidos à Solta.

No meio deste jogo de injeção de humor drástico, ressalta também à vista uma aposta em nunca ceder aos timings da narrativa da formatação da piada, ou seja, Dupieux está a marimbar-se para os tempos da entrega do moral da piada. Aqui não há punch line, a ideia é precisamente um efeito contrário, algo que pode desorientar espectadores sem pedalada para estes pactos de Dupieux. Aliás, todo o desenho do espaço narrativo é orientado segundo as regras da mais principesca imprevisibilidade - quando pensamos que teremos mais mosca, temos mais charge social ou quando pensamos que a personagem de Adèle Exarchopoulos vai por uma direção, cedo percebemos que a sua histeria corresponde a uma outra variante de burlesco sádico.

Se neste festival de excentricidade muito única e reativa há esse olhar de escárnio a uma "estupidez francesa" intemporal, Mandibules conquista por nunca ter pontos domesticáveis. Fica um rasto de caricatura rarefeita a uma camaradagem masculina em falência e aos clichés da amizade eternamente teen entre adultos. Num mundo de bestas e bestiários, a personagem mais querida desta comédia de golpistas mentecaptos é precisamente a mosca, mesmo quando tem as suas asas desajeitadamente amarradas.

dnot@dn.pt

Tópicos: Cinema, Cultura, França