A vida interrompida de Anne Frank e sua família

Milhões de pessoas em todo o mundo já leram o Diário de Anne Frank. Mas o que aconteceu à jovem, e seus companheiros de esconderijo, após a deportação, é agora revelado pelo historiador holandês Bas von Benda-Beckmann no livro Depois do Diário.

O diário da menina detém-se a 1 de agosto de 1944. Na sua última entrada, ela fala dos dilemas próprios de uma adolescente à descoberta de si própria: "Tenho medo que as pessoas que me conhecem como sou normalmente descubram que tenho outro lado, um lado melhor e mais belo. Tenho medo que trocem de mim, que me achem ridícula e sentimental e que não me levem a sério. Estou acostumada a não ser levada a sério." Três dias depois, a 4 de agosto, a polícia de segurança alemã invadiu o nº 263 da Rua Prinsengracht, em Amesterdão, encontrando oito clandestinos judeus que, desde julho de 1942, viviam escondidos e isolados do mundo exterior, num anexo nas traseiras. Entre eles está uma das adolescentes mais conhecidas da História, Anne Frank, uma menina que não teve direito a tornar-se mulher. Onde o diário de Anne termina, começa a investigação do historiador holandês Bas von Benda-Beckmann agora publicada em Portugal, no livro Depois do Diário (edição Casa das Letras).

"Graças ao Diário, sabemos muito sobre a vida destas duas famílias no anexo já que a Anne nos deu muitos detalhes. Mas até aqui sabíamos muito pouco sobre o que tinha acontecido depois de terem sido descobertos, presos e, finalmente, deportados", diz-nos o autor, que é investigador na Casa Anne Frank, o espaço musealizado em Amesterdão, construído a partir do local onde estiveram escondidos Edith, Anne, Margot e Otto Frank, Auguste, Hermann e Peter von Pels e Fritz Pfeffer. "Até à data - diz-nos Benda-Beckmann - os elementos de que dispúnhamos eram os testemunhos deixados pelo único sobrevivente do grupo, o pai de Anne e Margot, Otto Frank, que sobreviveu aos campos e morreu aos 91 anos, em 1980." Mas, como realça o autor, esses escritos eram breves e muito incompletos porque o próprio Otto sabia muito pouco sobre o destino final dos seus. "Ao longo dos anos, alguns jornalistas conseguiram reunir algum material sobre o tema, o que foi muito importante, mas faltavam ainda muitos elementos decisivos como as datas exatas das mortes, os momentos em que foram transportados de campo para campo e em que condições."

O que Benda-Beckmann encontrou, no processo de pesquisa, é uma realidade mais complexa do que, em regra, tendemos a imaginar: "A política antissemita dos nazis não é sempre igual, muda ao longo do tempo e muda sobretudo em função das várias fases da Guerra. Em 1944, quando se desenrolam estes acontecimentos, os nazis já selecionavam muitos judeus para trabalhar porque a guerra, que claramente estavam a perder depois do desembarque dos aliados na Normandia, estava a dizimar-lhes a mão-de-obra. Por outro lado, as SS queriam demonstrar a Hitler que também contribuíam para o esforço de guerra." Nesta conjuntura, grupos como as crianças ou homens e mulheres com mais de 50 anos, que antes seriam executados mal chegassem aos campos, começam a ser utilizados para a realização de tarefas. Por isso, se Anne Frank tivesse sido deportada um ano antes, em 1943, teria seguido imediatamente para a câmara de gás e "o mesmo teria acontecido com o pai, que já tinha 55 anos, bem como o outro clandestino proveniente do anexo, o dentista Fritz Pfeffer, que estava na mesma faixa etária." Em consequência destas novas diretivas, eles foram constantemente mudados de lugar, em abomináveis condições de transporte: Margot, por exemplo, começou por estar no campo de trânsito de Westerbork, daí foi mandada para Auschwitz e, finalmente, para Bergen-Belsen.

"Hoje estou convencido que Otto sobreviveu precisamente porque estava doente, mas como estava com o jovem Peter (lembra-se, o primeiro amor da Anne?) e este estava ocupado na distribuição do correio, teve acesso a alguma comida extra. Muitos dos pacotes recebidos em Auschwitz destinavam-se a pessoas que já tinham morrido e o rapaz conseguia sempre tirar alguma coisa", revela o autor. Ironia trágica, ao contrário do seu protegido Otto, Peter van Pels morreu aos 18 anos em Mauthausen: "Embora se desconheça a data exata - escreve - Peter von Pels sucumbiu a dado momento, vítima da política de aniquilação através do trabalho e das condições de vida brutais. Sabemos que trabalhou mais de 10 semanas no campo de Melk, na fábrica de rolamentos de esferas, antes de ser levado para a enfermaria de Mauthausen." Nunca mais voltou.

Sobre o destino de Anne e Margot, o autor escreve: "Com base no que sabemos sobre a progressão da doença [febre tifóide] e os testemunhos disponíveis, é possível fazer-se uma estimativa ainda mais precisa da data provável da morte (...). Os parcos relatos de outros prisioneiros ajudam a formar uma imagem das últimas semanas em que as irmãs Frank estavam vivas. Rachel Frankfoorder e Nanette Blitz, por exemplo, observaram que em janeiro de 1945 as jovens já estavam muito doentes." Segundo os cálculos apresentados por Benda-Beckmann, as duas jovens teriam morrido com um dia de intervalo, em Fevereiro de 1945. A guerra na Europa terminaria menos de três meses depois.

A história destas oito pessoas faz luz sobre milhões de outras, um pouco por toda a Europa, sobretudo nos países ocupados pelos nazis. "É muito importante reconstituir percursos individuais", diz-nos o historiador. Na Holanda havia uma importante comunidade judaica (muitos deles sefarditas de origem ibérica, já que muitas famílias tinham sido obrigadas a deixar Portugal e Espanha no século XVI), que foi muito atingida pelo Holocausto, "proporcionalmente mais do que em países como França , Bélgica ou Dinamarca", diz. "A sensação que eu tenho é que, nos Países Baixos, a população desaprovava a ocupação alemã mas não mostrava grande inquietação com a deportação dos judeus, ao contrário do que aconteceu em França, por exemplo, onde os atos de sabotagem da Resistência conseguiram muitas vezes boicotar o transporte para os campos". Isto apesar do governo de Vichy, que colaborava com o ocupante, ser claramente antissemita.

Depois do Anexo corresponde a uma pesquisa iniciada pela equipa de investigadores da Casa Anne Frank a partir dos testemunhos de pessoas que estiveram internadas no mesmo lugar e época. Mas este foi o ponto de partida, já que ao longo do livro encontramos elementos novos, como as fotos em que vemos os cadáveres empilhados a serem incinerados por prisioneiros às ordens dos dirigentes do campo. "São fotos tiradas secretamente por um prisioneiro chamado Alberto Errera", revela o autor e sobre a publicação das mesmas houve alguma polémica. "Algumas pessoas disseram que talvez não devêssemos publicá-las, precisamente por serem demasiado explícitas e chocantes. Eu penso exatamente o contrário. Porque estas fotos fazem exatamente o inverso das feitas pelos nazis, que tinham como propósito desumanizar as vítimas."

Benda-Beckmann acredita no potencial pedagógico deste tipo de testemunhos e recorda como bem recentemente, durante um evento na Casa Anne Frank, apareceu um grupo de negacionistas a manifestar-se, a dizer que tudo aquilo era fake. "A retórica neo-nazi é sempre a mesma: Dizem que Holocausto nunca existiu e Anne Frank é uma invenção dos judeus para controlar o mundo." Perante isto o que fazer? "Por um lado, podemos dizer que isto são teorias de conspiração alimentadas por um bando de lunáticos, mas é demasiado perigoso ignorá-los, num tempo em que têm ao dispor muitos meios para transmitir esta mensagem."

dnot@dn.pt

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