A serra da Gardunha vai à Gulbenkian cantar como renasceu dos incêndios
Com instrumentos agrícolas como percussão ao lado de vozes adultas e de crianças, Renascer, obra composta por Luís Cipriano, marca a primeira vez que o maestro, que já correu o mundo, pisa este sábado aquele palco
Andou a bater em cestos de vime, onde habitualmente se levam as cerejas, e quase lhe batiam a ele, até explicar que os queria comprar. Foi comprar nozes e, assim que começou a bater com elas, o vendedor disse-lhe logo: "Oh amigo, não é assim que se vê se estão maduras." Depois vieram as correntes de gado. Pediu uma com 40 centímetros e perguntaram-lhe: "Mas isto é para um borrego ou para uma cabra?" Para nada disso.
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O maestro e compositor Luís Cipriano estava, na verdade, à procura dos instrumentos para a obra Renascer, que amanhã se pode escutar às 16.00 no Grande Auditório da Gulbenkian.
Àqueles acrescem as escadas das oliveiras ou as peneiras de trigo. O que une todos aqueles instrumentos, que se juntam como percussão à marimba e ao vibrafone, é o facto de evocarem a serra da Gardunha. Renascer refere-se justamente ao renascimento da população daquele lugar após os incêndios do verão de 2017. "A própria letra é uma oração de São Francisco de Assis às criaturas. Fala do vento, da natureza, da chuva...", explica o compositor ao DN sobre aquela obra encomendada no ano passado pela autarquia do Fundão.
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As vozes que lhe dão forma são do Coro Misto da Beira Interior, dirigido por Luís Cipriano, e do Coro Infantil da Beira Interior, onde cantarão cerca de 40 crianças que pertencem ao projeto Zéthoven - Plante Um Músico, que envolve várias zonas rurais da Beira Interior e privilegia o acesso à música de pessoas com baixos rendimentos. A essas juntam-se dez vozes que formam o Coro das Lamentações das Almas da Fatela.
"São senhoras que na altura da Quaresma se vestem todas de negro e cantam a encomendação das almas pelas ruas das aldeias.". E se estas trazem à obra uma carga fúnebre, as crianças representam o renascer depois da tragédia.
Embora viva hoje na Covilhã, Luís Cipriano conhece muito bem aquele lugar e a sua população. Diz, por isso, que as consequências dos incêndios são mais profundas do que se possa parecer. Além dos anos que, por exemplo, uma cerejeira leva a dar novamente fruto, há a questão de, "devido à crise, houve muita gente que partiu para o estrangeiro e que, devido à incerteza, deixou cá os filhos com os avós. Então aqueles avós, cujas reformas são miseráveis, têm na agricultura não só a sua subsistência como a dos netos."
Deixa-me extremamente feliz proporcionar a crianças de 10 anos que pisem o palco da Gulbenkian quatro dezenas de anos antes de mim
Zéthoven - Plante Um Músico, iniciativa da Associação Cultural da Beira Interior, levou pela primeira vez alguns dos pais daquelas crianças a um concerto. Foi um dos 16 projetos de intervenção social pela arte que foram apoiados pela Fundação Calouste Gulbenkian na segunda edição (2016-2018) da iniciativa PARTIS. É por isso que este sábado, no âmbito da programação "Isto é PARTIS", sobe ao palco da Gulbenkian, palco que Luís Cipriano nunca pisou, embora tenha já corrido o mundo e dirigido a orquestra nacional da Coreia do Norte ou composto e conduzido a Oratória de Natal que se ouviu em Belém, Palestina, nos 2000 anos de Cristo.

O maestro e compositor Luís Cipriano
© Lisa Soares / Global Imagens
"O facto de irmos ao Grande Auditório da Gulbenkian tem um impacto muito grande na vida musical das pessoas. Com 54 anos, é a primeira vez que piso aquele palco. Claro que se eu morasse em Lisboa as coisas seriam diferentes. O que me deixa extremamente feliz é proporcionar a crianças de 10 anos que subam àquele palco quatro dezenas de anos antes de mim", conta ao DN.
Referindo-se a Zéthoven - Plante um Músico, Luís Cipriano explica que, quando gravou com as crianças um disco com duas missas suas, alguns pais lhe disseram: "O meu filho em latim? Não vai conseguir." E conseguiu, recorda. "Eu sou muito duro com eles."
O compositor, que em 1998 foi convidado para ir ao Vaticano entregar a sua obra litúrgica ao Papa João Paulo II, via na Coreia do Norte uma espécie de desafio máximo. "Passo a vida a dizer aos meus alunos e a quem trabalha comigo que não há impossíveis nesta vida", conta.
Conheceu em Tarragona um representante do país, manifestou-lhe interesse. 15 dias depois era convidado para ir como maestro dirigir a orquestra nacional. "Eles têm três obras importantíssimas, cada uma dedicada a cada um dos líderes. Eu fui o primeiro estrangeiro a quem eles confiaram as três obras." Foi no ano passado que Cipriano dirigiu as obras dedicadas a Kim Il-sung, Kim Jong-il, e Kim Jong-un, o atual chefe de Estado.
O maestro recorda que esteve ao lado dele quando foi assistir a um espetáculo."Estava sentado na zona VIP e estranhei, porque as câmaras estavam todas no palco a apontar para ali. A lógica era ser ao contrario. Passado um bocado ele entrou. É a loucura. Presenciei a reação do povo. Aquilo não é ensaiado. A cara deles transfigura-se. Se for católica e um dia for a Fátima e der com a Nossa Senhora, é igual ao que se passa ali. Percebi que não vale a pena os europeus e americanos irem para ali tentar pôr o povo contra o querido líder, porque não têm hipóteses."
Atual maestro titular da Orquestra Clássica da Beira Interior e do Coro Misto da Beira Interior, Luís Cipriano foi conselheiro da Olimpíadas Corais na Alemanha, Áustria, China e Estados Unidos.