A "demissão forçada" do editor que deu voz a um dos acusados do #MeToo

Jian Ghomeshi, acusado de agredir e assediar sexualmente mais de 20 mulheres, assinou um longo artigo na New York Review of Books. Dias depois e sob contestação, o editor Ian Buruma foi protagonista de uma "demissão forçada". O #MeToo compromete o discurso livre?

Em plena era #MeToo um longo artigo assinado pela estrela da rádio canadiana Jian Ghomeshi, acusado de agredir e assediar sexualmente mais de vinte mulheres, levou à "demissão forçada" de um editor, Ian Buruma; já motivou uma carta assinada por alguns dos mais prestigiados escritores da língua inglesa, entre eles Joyce Carol Oates e Ian McEwan, e um pedido de desculpas por parte da direção da New York Review of Books.

O palco da polémica é, precisamente, o reputado suplemento cultural norte-americano New York Review of Books (NYRB). No centro está o texto de Ghomeshi, Reflections from a Hashtag, publicado na última semana, em que este minimizava as alegações de abuso e assédio sexual - recebeu várias acusações formais e chegou a fazer um pedido de desculpas a uma das mulheres. O ex-locutor de rádio nega no mesmo artigo algumas das acusações.

Quem for ler agora o longo artigo de Ghomeshi, que só será impresso na edição de 11 de outubro, encontra um mea culpa da NYRB na introdução, dizendo que deveria incluir o reconhecimento da "natureza séria e do número de alegações que foram feitas contra o autor" do texto. A mesma introdução contextualiza o caso, lembrando que em 2014 o locutor de rádio "foi despedido da Canadian Broadcasting Corporation depois de a direção ter tomado conhecimento que ele causou danos físicos a uma mulher." Isso foi antes das referidas 20 mulheres que Ghomeshi terá assediado e agredido sexualmente virem denunciá-lo.

Uma das mulheres que acusaram o ex-locutor de as atacar, Linda Redgrave, disse ao Guardian ter ficado perturbada com o artigo e acusou Ghomeshi de tentar provocar empatia e de dar conta do processo de forma errada. Redgrave vai escrever um artigo de resposta que deverá sair na edição de 25 de outubro da New York Review of Books.

Questionada se Buruma deveria ou não demitir-se na sequência da publicação do artigo, Redgrave respondeu que sim. "Há uma linha ética que não se pode atravessar. Acho que ele atravessou essa linha. Ele sabia que estava errado e ainda assim fê-lo. Ele mereceu-o." A demissão, recorde-se, foi confirmada na quarta-feira.

Uma carta assinada por 109 pessoas, entre escritores e académicos, foi entregue nesta semana à direção da NYRB, criticando a saída de Ian Buruma, de 66 anos, que assumiu o cargo em 2017. Joyce Carol Oates e Ian McEwan estão entre aqueles que se insurgiram contra o facto de "a reação pública a um simples artigo" se ter tornado na "ocasião do despedimento forçado de Buruma".

"Dados os princípios do debate intelectual aberto em que a NYRB foi fundada, o seu o seu despedimento nestas circunstâncias parece-nos um abandono da missão central da NYRB, que é a livre exploração de ideias", lê-se na carta.

Buruma, por sua vez, afirmou à revista alemã (a sua nacionalidade) VN que foi "condenado no Twitter, sem nenhum processo devido" e mantém a confiança na sua decisão. "Eu esperava que houvesse reações intensas, mas esperava abrir uma discussão sobre o que fazer com pessoas que se comportaram de forma errada, mas foram absolvidas em tribunal", acrescentou.

O editor notou ainda que "é muito irónico: como editor da NYRB fiz um número dedicado aos agressores do #MeToo que não foram condenados em tribunal, mas sim pelas redes sociais. E agora sou eu próprio julgado em praça pública." Buruma referia-se à edição de 11 de outubro, de que fará parte o artigo de Ghomeshi, intitulada "The Fall of Men" ("A queda dos homens").

Rea Hederman, diretor da publicação, reconheceu as "falhas editoriais" no tratamento do texto de Ghomeshi, que, além de não dar voz ao lado das vítimas do ex-locutor ou enquadramento ao caso, incluem não terem elementos femininos da equipa presentes nesse tratamento. Hederman rejeitou ainda que a saída de Buruma se deva ao facto de os leitores se terem insurgido contra ele nas redes sociais.

Um membro da equipa da NYRB contactado pelo Guardian, que não quis ser identificado por não estar autorizado a comentar o caso publicamente, disse-se aliviado com a demissão de Buruma, dando conta das dúvidas internas que existiam em torno da forma como o artigo foi tratado editorialmente. A mesma fonte diz ainda sentir-se desconfortável com o facto de o debate causado pelo artigo de Ghomeshi se ter transformado num debate sobre a liberdade de expressão quando, a seu ver, a questão é meramente de tratamento editorial.

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