O centenário de Roland Barthes: fragmentos de uma vida dolorosa

O homem que fez moda de um livro de Semiologia faria hoje cem anos. Ficou inacabada a obra, febril, de alguém que acabou por desistir de viver

No combate aceso e sem tréguas que manteve contra a "velha crítica", escreveu: "O escritor não tem passado, nasce com a obra". Roland Gérard Barthes, nascido em Cherbourg a 12 de novembro de 1915, defendia assim, com total veemência, que a abordagem às obras literárias se traduziria numa mera perda de tempo se partisse da vida do autor e das suas consequências nos escritos.

Interessava-lhe muito mais a injecção de outros conceitos - os significados, as "mitologias", a ideologia, as crenças, a mestiçagem de formas de expressão aparentemente longínquas, da Moda à Fotografia - que considerava decisivos para a análise de uma criação, ficcionada ou não.

Hoje, passados mais de 35 anos sobre a sua morte, torna-se quase inevitável reequilibrar os pratos da balança - Tiphaine Samoyault, que assina um longo e pormenorizado trabalho sobre Barthes, opta por cruzar as ideias com os momentos, por localizar as teses do homem que conseguiu tornar viral um livro de Semiologia, Fragmentos de um Discurso Amoroso, nos passos difíceis que iam sendo percorridos por quem nunca teve direito a uma existência fácil e que, mesmo atingindo um enorme reconhecimento académico, pareceu sempre remar contra as marés. Por outras palavras, talvez a biografia "marginal" de Roland Barthes mereça algum destaque na forma como ele ajudou a evoluir o pensamento e a metodologia de aproximação às palavras.

Tuberculoso e homossexual

Samoyault começa o livro pelo fim. Relata os últimos dias de Barthes, atropelado por uma carrinha (de uma lavandaria, se quisermos ver aqui algum macabro simbolismo) quando regressava de um almoço de intelecuais em torno de François Mitterrand e da sua candidatura presidencial para 1981 (em que derrotaria Valéry Giscard d"Estaing), e atirado para uma cama de hospital. Aí passou mais de um mês, até a morte, a 26 de Março de 1980, período em que os amigos detectaram uma progressiva desistência até ao desfecho final. Mais do que as sequelas do acidente, Barthes acabava por render-se a um inimigo de sempre - o seu problema respiratório que, desde a infância, lhe tinha inflingido hemoptises violentas e estadias forçadas em sanatórios, em luta com a tuberculose.

É fácil de compreender que os longos períodos de internamento contribuiram para a inclinação de Roland na direcção da leitura. Mas acabaram, igualmente, por balizar o seu trajecto académico: por um lado, os estudos foram interrompidos e estenderam-se no tempo; por outro, Barthes esteve impedido de leccionar durante anos, por causa de uma lei de precaução contra os contactos de alunos com professores tuberculosos. Os amigos foram mundando ao ritmo da saúde e das recaídas. E, com peso agravado, teve que viver muito tempo longe da mãe, algo que contribuiu para o seu isolamento.

A mãe ganha, de resto, uma importância extraordinária, até por Barthes ser órfão de pai desde os onze meses de idade, na sequência do afundamento pela marinha alemã do Montaigne, barco em que Louis Barthes exercia a sua profissão. Roland foi mudando de casa, sempre protegido pela mãe, mesmo quando esta voltou a casar e o presenteou com um irmão.

A morte de Henriette Binger, em 1977, junta-se aos factores aventados por Samoyault como catalizadores da "desistência" do homem que viveu em angústia por querer ocultar da mãe, muito mais do que do resto da sociedade em que se movia, a sua condição de homossexual. Depois de uma paixão efémera ("dez minutos", no dizer irónico do próprio Barthes) por uma bailarina espanhola, Roland vive a sua tendência sexual numa época em que as condenações e os preconceitos eram sumários e eficazes.

Para os estudiosos da sua obra, a descoberta e a prática conduzem-no a um dos seus maiores interesses e referências literárias: André Gide.

Camus, Sartre e... Karl Marx

Outra das figuras da cultura francesa a que se dedica, durante anos, é Jules Mchelet, filósofo e historiador oitocentista - coube ao autor de O Processo dos Templários o protagonismo na tese universitária de Barthes, interrompida pelos males de saúde e pelos múltiplos interesses e actividades do autor.

Influenciado pelo linguista Ferdinand de Saussure, Barthes há de referir outras duas presenças marcantes no seu pensamento: Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Em ambos os casos, se os livros contaram nessa aproximação, também não deve desconsiderar-se o papel que ambos desempenharam na Resistência francesa ao nazismo e na definição do intelectual comprometido. Aliás, numa carta ao seu amigo Philippe Rebeyrol, Barthes dava conta das suas ideias: "Politicamente, sou cada vez mais levado a pensar de uma forma marxista, porque é nesse quadro que a descrição do mundo real me parece correcta; depois, porque também tenho esperança numa sociedade virginal, por assim dizer, em que, de alguma forma, tudo será enfim possível espiritualmente; isto porque, num certo sentido, sinto que não haverá uma verdadeira liberdade interior fora de uma sociedade verdadeiramente socialista; parece-me mesmo que, só então, o homem poderá começar a filosofar".

Nenhuma destas convicções evita que Barthes choque de frente com um país "socialista", a Roménia, onde exerce funções de bibliotecário e de adido cultural da França. As perseguições individuais e a repressão cultural conduzem à sua desilusão face ao "socialismo real". Depois de viver em Alexandria, no Egipto (onde é iniciado na Linguística), e em Marrocos, aproveita o regresso a França para lançar as bases daquilo que viria a ser o fundamental da sua obra, que se alarga pelos campos da Semiologia, da Linguistica e da Crítica Literária, com artigos publicados em revistas culturais tão diversas como Critique, Esprit, Communications ou Tel Quel. Entre os seus livros mais destacados figuram Elementos de Semiologia (1965), O Sistema da Moda (1967), O Prazer do Texto (1973), Fragmentos de Um Discurso Amoroso (1977) e A Câmara Clara: Notas Sobre A Fotografia (1980), ainda hoje parte integrante de muitos currículos académicos.

Ao mesmo tempo, abandonou a sua primeira grande paixão, o Teatro, apesar de ainda ter sido actor - representando um escritor, Thackeray - num filme de André Techiné sobre as irmãs Bronté, com Isabelle Adjani e Isabelle Huppert). Viveu, até ao fim, dividido entre a ânsia de reconhecimento e o incómodo de se ter tornado figura púlica. E nunca deixou de ser polémico. Uma sentença final? Talvez não haja maior provocação do que esta: "O escritor é alguém que combina citações, eliminando as aspas". Disse.

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