O café do René fechou de vez

Morreu o ator inglês que ganhou fama no papel de um francês, trapalhão, sedutor e disposto a múltiplos servicinhos para não sofrer dissabores de guerra. O protagonista de Alô, Alô! tinha 75 anos e vivia num lar de idosos

Agora é mesmo de vez: apagam-se as luzes do café de René Artois, silencia-se o piano que tantas vezes acompanhou a esganiçada Edith, evapora-se o vinho adulterado que era servido à clientela de todas as nacionalidades. Com a morte do ator Gorden (com "e", alegadamente na sequência de um erro datilográfico de quem tratava das carteiras profissionais dos artistas) Kaye, de 75 anos, acabaram-se as suas cenas de sedução com as empregadas Yvette, Mimi ou Maria, a aproveitar a penumbra, os seus insultos à mulher ("you stupid woman!"), os fretes aos alemães e os olhares lânguidos do tenente Gruber para o comerciante, as impaciências de cada vez que Michelle Dubois, figura da Resistência francesa anunciava que só diria as coisas uma vez, as comunicações via rádio feitas debaixo da cama da sogra, Madame Fanny, as rivalidades românticas com o cangalheiro Monsieur Alphonse...

Por mais voltas que se dê, a carreira de Gorden Kaye confunde-se com a vida e as peripécias de René. Foram poucas as incursões que fez no Cinema, embora acabasse por participar em dois filmes (Aventuras em Terras de Rei Bruno, O Discutível, de 1977, e Brazil: O Outro Lado do Sonho, de 1985) realizados por Terry Gilliam, um dos membros de pleno direito desse "estrela de seis pontas" chamada Monty Python. Fora isso, regista-se outra comédia britânica, Fuga e Regresso, de 1979, inspirada numa... série de televisão. Contas feitas, foi na TV que Kaye conseguiu ser notado ao ponto de o argumentista e realizador David Croft - um veterano que também assinou séries como It Ain"t Half Hot, Mum ou Are you Being Served?, em que Gorden participou com papéis menores - lhe ter enviado os primeiros guiões de Alô, Alô!, convidando-o para protagonista. Antes disso, já tinha marcado presença noutros títulos de TV, desde a mítica Coronation Street até à comédia de ficção científica Come Back, Mrs. Noah.

Talento tardio

Quase pode falar-se de Gorden Kaye como um talento tardio: quando se estreou em televisão já tinha 27 anos, quando alcançou o estatuto de primeira figura estava acima dos 40. Nascido em Huddersfield, no Yorkshire, filho único e tardio, ainda viu o pai conduzir camiões durante a II Guerra Mundial, para depois se empregar - como engenheiro - numa fábrica de tratores. O jovem Gorden aproveitou a corpulência a estatura (1,79m) para jogar râguebi. Gostava de recordar o facto de ter entrevistado os Beatles para uma rádio local, em 1965. Trabalhou na indústria têxtil, no fabrico de vinho e, também, no negócio dos tratores. Chegou à representação através do teatro radiofónico, tão em voga na década de 1960. Na TV, embora mais centrado na comédia, acabaria por abraçar vários géneros, desde os programas infantis às séries de detetives.

A 25 de janeiro de 1990, sofreu um insólito acidente: durante uma tempestade, um pedaço de um painel publicitário, carregado pelo vento, entrou pelo para-brisas do seu carro e bateu-lhe na cabeça. Deixou-lhe uma cicatriz na testa, uma total ausência de memória do acidente e uma prolongada recuperação em que participou ativamente Jeremy Lloyd, outro dos criadores de Alô, Alô!, que o submeteu a longas sessões de vídeo com episódios da série, para o ajudar a recuperar as lembranças e a identidade.

Um ano antes, ao publicar a sua biografia (René & Me: A Sort Of Autobiography), Gorden Kaye referiu-se abertamente ao facto de ter superado a timidez, contornado o excesso de peso, confessando-se homossexual. Além das nove épocas televisivas, Alô, Alô!, na versão teatral, valeu-lhe cerca de 1200 subidas ao palco. Além disso, houve ainda um programa especial da série (interdita pelos alemães até 2008 e mal-amada pelos franceses ainda hoje) em 2007, quinze anos depois de terminada a emissão regular, e uma representação especial em Brisbane, Austrália, com alguns sobreviventes do elenco original e atores nativos.

Agora, René junta-se de novo à mulher, Edith (Carmen Silvera), à sogra, Fanny (Rose Hill), aos oficiais alemães, o coronel Kurt von Strohm (Richard Marner) e o general von Klinkerhoffen (Hilary Minster), a Monsieur Alphonse (Kenneth Conor) e ao "perito em disfarces" ("it is I, Leclerc!") Roger Leclerc (Jack Haig), todos previamente falecidos. Nós, cá, é que não achamos gracinha nenhuma.

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