A obra de Carl Orff que resiste ao tempo

A edição de nova gravação de 'Carmina Burana', por Daniel Harding, é motivo para recordar o compositor.

Poucas obras da música do século XX alcançaram o sucesso global de Carmina Burana, a cantata que o alemão Carl Orff (1895-1982) criou em meados dos anos 30 a partir de 24 poemas medievais. São inúmeras as gravações editadas em disco e é frequente a sua passagem pelos palcos. Mesmo assim, ciente da concorrência, o maestro inglês Daniel Harding acaba de lançar uma nova gravação, com a Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks. "É uma obra tremendamente popular, e mesmo quando surgem novas gravações suscita sempre fascinação e interesse", explica em entrevista ao DN, revelando que a ideia nasceu contudo da editora.

O sucesso monumental desta cantata baseada nos Carmina Burana - poemas dos séculos XI a XIII encontrados em 1808 numa abadia na Baviera - poderá ter a ver com o que Daniel Harding descreve como sendo "sedutor" nesta música. O maestro reconhece ali "uma combinação com uma linguagem musical que parece ter a autoridade de ser antiga". E continua: "É uma espécie de fraquinho que os seres humanos têm por coisas que são antigas... Se andam por aí há muito tempo, é porque há verdade nelas, pensamos." Carl Orff combinou essa linguagem musical "que tem ecos de outros tempos" com "uma arrumação que é muito moderna e fácil de assimilar". E assim cria "uma espécie de linguagem musical artificial". É, como conclui, "inteligente e muito manipuladora ao mes- mo tempo".

Aprofundando a descrição, Harding explica que Carl Orff usa aqui "a autoridade de poemas da Idade Média e a autoridade de uma música que, de uma forma algo sofisticada, parece soar a cânticos e a canções folk". Assim "liga estereótipos musicais que temos e arruma-os com uma percussão exótica e com dispositivos rítmicos modernos e com uma orquestração muito colorida". Em suma, "combina linguagens musicais que nos são muito familiares e que assim comportam memórias. E por isso esta "é uma música fácil de apreciar".

Estreada na Alemanha em 1937, Carmina Burana deu grande visibilidade ao compositor que, ao mesmo tempo, via o seu sistema de educação musical ser adoptado oficialmente. Datam desde então suspeitas de ligação de Carl Orff ao poder nazi. Suspeitas ainda hoje sem resposta, tal e qual não parece haver certezas sobre a sua eventual ligação ao movimento de resistência Die Weisse Rose (sendo contudo certa a sua amizade com o professor Huber, um dos rostos deste grupo), tal e qual levanta o historiador Michael H. Kater no livro Composers of the Nazi Era.

"Creio que a reacção inicial de Goebbels foi de desagrado", comenta Daniel Harding sobre os primeiros efeitos de Carmina Burana na Alemanha de então. Mas "depois, aperceberam-se de que a arte manipulativa de Carl Orff estava muito próxima da ideia de arte de propaganda que o partido nazi estava a usar", explica. O maestro sublinha que não se refere aqui a ideias políticas, mas fala antes "da forma de manipular as emoções das pessoas. Até porque, se formos ver, em Carmina Burana não há nada de político no texto". Para Dainel Harding, "a combinação do antigo e do moderno" que encontramos em Carmina Burana "é como um equivalente musical da arquitectura do período nazi". Ao mesmo tempo "há o uso de rituais... A manipulação que Carl Orff usa é um pouco o equivalente musical disso tudo", conclui.

65 anos depois do fim da II Guerra Mundial é contudo raro vermos obras de Carl Orff - além de Carmina Bu-rana, naturalmente - tanto em disco co-mo em programas de concertos. Uma possível factura dessa eventual li-gação política de outros tempos? "Quer que o digam ou não, ele [Carl Orff] não pode escapar à ideia de que, de alguma forma, tenha estado ligado ao poder nazi", comenta o maestro. "Para muitas pessoas, Carmina Burana é também um símbolo do que não gostam e de algo que consideram nada atractivo" na música. Mas, reflecte, "a verdade é que a peça manteve a sua popularidade apesar desta associação. Mas talvez haja quem o esteja a castigar ignorando todo o resto da sua obra, o que é uma forma muito humana e lógica de agir", aponta.

Daniel Harding confessa que não conhece bem o resto da obra de Carl Orff. "Como acontece com outros compositores, haverá certamente várias razões pelas quais certas obras se tornam mais populares", reconhece. "Muitas vezes até encontramos exemplos mais estimulantes em peças menos conhecidas, mas o facto é que não captaram a imaginação da mesma forma tão acessível. E certamente deve ter sido uma frustração para ele ver como uma peça se tornou tão mais popular que as outras".

Harding lembra que "há muitos compositores que dizem algo numa peça que capta o interesse das pessoas de uma forma especial". E por isso pensa que Carl Orff "criou esse problema a si mesmo ao escrever [em Carmina Burana] uma peça tão bem sucedida e manipuladora". Mas, termina com esperança: "Talvez chegue um tempo em que a sua obra restante venha um dia a ser conhecida..."

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