Amadeo. Um fio de luz cortado que se volta a ligar

O Grand Palais, em Paris, inaugura hoje a exposição dedicada à obra do pintor português. Mais de 200 obras do pintor português e uma colagem inédita que é mostrada pela primeira vez. Fica até 18 de julho.
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"É como um fio de luz que tivesse sido cortado", afirma Helena de Freitas, sentada num banco corrido de uma das salas de exposições do Grand Palais, centro de Paris, onde está tudo pronto para a mostrar Amadeo de Souza-Cardoso ao mundo a partir de amanhã, dia em que abre ao público. Internacionalizar o artista português é o objetivo do trabalho que a comissária da exposição e a Fundação Calouste Gulbenkian têm em mente.

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Cerca de mil pessoas eram esperadas ontem às 18.30, para a inauguração oficial, com o primeiro-ministro António Costa e o ministro francês dos Assuntos Europeus, Harlem Désir. Um longo cartaz tangerina anuncia a Amadeo no espaço pertencente à rede de museus nacionais de França até 18 de julho. Com esse cenário como pano de fundo, o chefe do Governo português disse tratar-se de "uma grande oportunidade de mostrar mais um grande artista aqui em França", disse aos jornalistas. Antes de Amadeo, esteve Picasso. Antes dele, Velázquez. Por estes dias, na loja do Grand Palais há catálogos de Amadeo, discos de fado, livros de Sophia de Mello Breyner e sardinha em lata.

Em 1912, seis anos após a chegada a Paris (para estudar arquitetura, mas já a pensar em pintura), Amadeo expôs neste Grand Palais, entre os Campos Elísios e o Sena, durante o Salón de Automne. Com esta exposição regressa, por fim, à Paris pela qual ansiava em 1916 quando escreve ao agente artístico Walter Pach, para os EUA: "Já me sinto em Paris, conto lá estar a 3 de janeiro - o mais tardar". Dois anos depois ainda estava em Manhufe. Morreria em 1918, aos 30 anos, vítima de gripe espanhola.

O homem com quem troca correspondência, Pach, é essencial para a história: é dele que parte a iniciativa de levar trabalhos de Amadeo para a exposição internacional de Arte Moderna, em Nova Iorque, Chicago e Boston, em 1913. Os trabalhos são bem recebidos. Vende sete das oito obras que envia. Três deles são comprados pelo milionário Arthur Jerome Eddy que os doará ao Art Institute de Chicago. É com eles que abre esta exposição: Paysage, Le château Fort e Le Saut du Lapin.

Esta última obra batiza o núcleo de peças que aqui se apresenta. Nas suas pesquisas, a comissária da exposição, Helena de Freitas, descobre que salto do coelho é também o nome de uma dança que se caracteriza por uma grande liberdade na escolha de caminhos - uma súmula da obra do pintor. "Sou cubista, futurista, surrealista, sou um pouco de tudo", diz Amadeo.

"Ele quer uma afirmação de autonomia, ser inconfundível, tem consciência disso", considera a comissária, lembrando que é em Manhufe, a terra natal perto de Amarante, sozinho, que ele desenvolve "a parte mais fulgurante da sua obra", guardada para a última parte da exposição.

Uma colagem inédita

É desse derradeiro período uma colagem feita a partir dos seus materiais de promoção a revista norte-americana McCalls. Foi encontrada recentemente pela família de Amadeo, entre os objetos pessoais e está assinada atrás. Denota esse interesse pela publicidade que se vê nos últimos quatro quadros da exposição, cheios de referências a marcas: Coty, o perfume da mulher de Amadeo; Barrett, a máquina de calcular; Eclypse, a cera; Brut 300, o champanhe. São obras em que recorre aos pochoirs. Esses moldes de letras e números podem ser vistos lado a lado com fotografias das suas prováeis maquetes. "Fotografias inéditas, tiradas pelo próprio artista, em que se torna claro o processo criativo", nota Leonor Oliveira, assistente de comissariado. Foi possível perceber, por exemplo, que assentava estas composições sobre o lambril do atelier, um espaço na quinta da família mandado construir pelos pais, hoje vazio. Helena de Freitas traça o paralelo entre estas colagens e o trabalho de Kurt Schwitters. "Os artistas estão a pensar nestas coisas em lugares diferentes".

O esquecimento

Entre as influências de Amadeo está Amedeo Modigliani. A filha do pintor garantia que o pai chorou como uma criança quando soube que Amadeo tinha morrido. Partilham um nome semelhante, são ambos estrangeiros em Paris, morrem cedo. Amadeo em 1918, o italiano dois anos depois. Amadeo é um desconhecido no mundo da história da arte, a obra Nu Couché de Modigliani está entre as mais caras já vendidas num leilão. A que se deve, então, o desconhecimento em torno da obra do português? Um desconhecimento que chegava ao diretor do Grand Palais, Laurent Salomé e só foi colmatado quando lhe foi apresentada a obra em Lisboa.

Os seus quadros não eram vistos. A viúva, Lucie Pecetto, de origem italiana, com quem vem para Manhufe em 1914 para se casar (acabando por ficar apanhados pela Primeira Guerra Mundial), guarda-os no seu apartamento por décadas, "quase como uma representação simbólico [de Amadeo]", explica Helena de Freitas. "Há fotografias na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian em que se vê o apartamento cheio de obras, até debaixo da cama havia quadros", acrescenta. "Havia também o desejo de colocar o artista num grande museu", explica a comissária. Mas em Portugal não existe esse museu. "O Museu de Arte Contemporânea não tinha orçamento para essas obras".

A sua obra é mostrada em Paris em 1925 mas é preciso chegar a 1958 para voltar a sair da penumbra, na Casa de Portugal. As relações entre Portugal, uma ditadura, e França, não ajudam. Mas um quadro, Les Cavaliers, chega ao Museu de Arte Moderna/Centro Pompidou. "Não havia proteção aos artistas e às artes", situa Helena de Freitas. Em Portugal, é mostrado em 1959, numa exposição organizada pelo SNI (Secretariado Nacional de Informação), no Palácio Foz, em Lisboa. E só na manhã de ontem, críticos e jornalistas tomavam conhecimento com a obra do pintor.

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Lembrado pelos artistas

"Amadeo tornou-se uma espécie de mito", explica Helena de Freitas, lembrado sobretudo por artistas. Reforça: "Foram eles que reclamaram a presença de Amadeo".

A história da arte já está escrita, "é um puzzle cristalizado", justifica Helena de Freitas, lembrando que o próprio pintor se queria manter à margem de escolas. Deixar entrar Amadeo, ou outros artistas da época, é uma jornada longa. "É preciso apresentá-lo", afirma, acreditando "estarmos no momento certo", em que se fala de "modernidades plurais". "Amadeo preciso de ser olhado, criticado, recuperar o seu lugar na História". A comissária afasta-se da frase em jeito de slogan "o último segredo da arte moderna". "Não é uma operação de marketing."

Como resgatar Amadeo

Trata-se mesmo de o resgatar. "Ele participa nos principais eventos do seu tempo", constata Helena de Freitas. Está no Salón des Independants, em março de 1912, e no Salon de Automne, em outubro, na Galeria Miethke, em Viena, ao lado de Picasso, Braque e Léger, e na galeria Der Sturm, em Berlim. E chega ao Armory Show, onde a imagem de Avant la Corrida serve de apresentação. "Ele não é o inventor mas está entre os grandes", diz Helena de Freitas, justificando assim que a exposição comece com os quadros que pertencem a uma instituição estrangeira. Saut du Lapin está habitualmente ao lado de Modigliani em Chicago.

Avant La Corrida também é um primeiros na mostra. Desconhecia-se o seu paradeiro até à exposição Diálogo de Vanguardas, de 2006. Um desenho preparatório mostrado no site da fundação conduziu o herdeiro do proprietário instituição, a maior detentora de obras do artista. Helena de Freitas espera que seja possível resgatar mais quadros. Nomeadamente Pêcheur, do qual está exposto um estudo, ou O Atleta, outra obra em paradeiro em incerto, ou, os dois desenhos originais do álbum XX Dessins cujo proprietário se desconhece.

A exposição faz parte do programa de celebração dos os 50 anos da delegação francesa da Gulbenkian. Artur Santos Silva, presidente da fundação lembrou os dois que foram necessários para encontrar um local, em Paris, "tinha de ser em Paris", para internacionalizar o pintor. Um investimento que será conhecido no próximo relatório e contas, adianta.

As mais 200 obras do artista português, desenhos e caricaturas, e ainda documentos espalham-se por dois andares. O primeiro, foca-se em Paris, e termina com os XX Dessins, uma espécie de portfólio que Amadeo compõe para mostrar o seu trabalho, depois de ter ilustrado o livro La Legende de St Julien Hospialier, de Flaubert. Desenhos originais, impressos e as placas usadas estão na exposição. Entre eles há uma instalação contemporânea da autoria de Nuno Cera, Tour d" Horizon.

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Junta a ele, mais trabalho inédito: um conjunto de provas fotográficas sobre vidro de Lucie, que finalmente vê o trabalho de Amadeo num museu.

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