Cultura
11 outubro 2023 às 09h40

João Barrento: "O vampirismo literário de Goethe era uma terapia"

Republicação de entrevista de João Barrento ao DN na edição do dia 25 de janeiro de 2018, a propósito do ensaísta e tradutor ter vencido o Prémio Camões.

João Céu e Silva

Após traduzir do alemão vários livros de Goethe e de muito escrever sobre o autor, João Barrento achou que estava na hora de recuperar inúmeros textos escritos ao longo de décadas e, com o acrescento de novas investigações, redigir uma monografia sobre um dos maiores nomes da literatura da Alemanha. Esforço inédito em Portugal, intitula-se Goethe - O Eterno Amador, deixando em mais de 300 páginas o retrato "pessoal e literário" de um dos autores mais expressivos da cultura europeia. Logo no preâmbulo avisa para a necessidade de retroceder ao exato princípio da sua vida para se o compreender bem: "Goethe começa a sua autobiografia com o facto de ter sido quase dado como morto na hora do parto, salvando-se porque a conjunção dos astros era-lhe favorável. "

Não acaba a primeira página sem referir o pico de interesse português em Goethe na época de Hitler...

Havia uma influência alemã em Portugal nesse tempo, sobretudo num núcleo ligado aos Estudos Alemães na Universidade de Coimbra - uma ou outra figura em Lisboa -, muito suscetível ao que vinha da Alemanha. Goethe e a sua obra Fausto eram bons representantes de uma germanidade e foi aproveitado, tal como Nietzsche. No entanto, o primeiro pico de receção dá-se no século XIX pelas melhores razões e tem uma influência grande numa fase agonizante do Romantismo para a renovação da literatura portuguesa, orientando-a no sentido de uma abertura à Europa e de uma literatura da ideia. Para isso, Goethe era o grande modelo.

Temos leitores suficientes da obra?

Desde bastante cedo, pois Werther é traduzido no começo do século XIX e dá-se uma assimilação da obra por autores portugueses como Garrett, que vai buscar o prólogo do Fausto para as Viagens na Minha Terra. Continuará ao longo do século XX, até em Fernando Pessoa na sua busca de afinidades com Goethe. Há uma receção contínua, se bem que hoje sente-se apenas um interesse relativo, apesar de todas as obras principais estarem disponíveis.

Só não existia uma monografia?

Nunca aconteceu, apesar de terem existido professores germanistas, como Paulo Quintela, que eram interessados.

Goethe é uma das suas fixações!

Não o diria dessa forma, mas acabou por ocupar-me durante bastante tempo e repetidamente enquanto professor universitário, tradutor e autor de textos sobre a obra. Goethe ficou-me dos tempos de estudante por via dos professores e nunca esqueci Fausto.

Então, a fixação é Walter Benjamin?

De há bastantes anos para cá talvez seja mais Benjamin do que Goethe em termos de ocupação mais sistemática. Descobri-o em Hamburgo, quando era leitor de português, mais pelo lado político relativo aos anos 60. As teorias da história dele interessaram-me, tanto que traduzi as suas obras reunidas e estou a ultimar uma edição com mais de mil páginas de Passagens. Benjamin só publicou dois livros em vida e este nasce como o grande livro que desejava escrever sobre Baudelaire e a Paris do século XIX e a história europeia. Não passou da fase dos fragmentos.

Benjamin atravessa-se várias vezes nesta monografia. Porquê?

Porque escreve sobre Goethe e é fundamental em relação a alguns dos seus livros, como As Afinidades Eletivas, por fazer uma leitura muito além da interpretação habitual, a de ser lido como um romance de adultério em vez de uma situação humanamente complexa do encontro de dois casais. É sobretudo um grande livro sobre o destino humano e as possibilidades que se abrem a qualquer vida, também um pouco sobre as forças demoníacas que agem constantemente sobre a vida.

Não evita fazer um alerta ao "vampirismo literário" de Goethe. É bastante?

O que acontece é mais no sentido de aproveitar-se ou apropriar-se - isto é muito característico nele - e não tanto vampirizar autores e textos. No entanto, pode dizer-se que é um grande recetáculo da tradição desde os gregos, transformando-a. Daí que se possa dizer que esse vampirismo literário em Goethe é também uma terapia porque Werther, como outros livros, nasce da experiência do autor na relação com outras personagens, às vezes mulheres. Ou seja, não inventa os enredos dos livros, nascem da necessidade de superar determinada situação numa relação complexa através da escrita. Quanto ao vampirismo, há algum quando recupera desde o século XVI toda a matéria do Fausto para trabalhar na obra.

Fazia questão de viver certas experiências para as poder romancear?

Não acontece intencionalmente, mas é um facto que a sua experiência é o motor fundamental da escrita, como bem se vê em Viagem a Itália. Quanto a Fausto, o trabalho é diferente porque o ocupa durante quase 50 anos e até aos últimos meses de vida.

Não evita os comentários dúplices de Thomas Mann sobre Goethe...

Mann tem dois grandes textos sobre Goethe, além de existir uma quase identificação entre ambos porque transformaram-se, cada um à sua maneira, em mitos na literatura alemã. Mann distanciava-se aqui ou ali da figura olímpica de Goethe pela dimensão quase excessiva que adquire.

Diz que a aproximação a Goethe deve ser cautelosa e relativista. Porquê?

Tem em relação a si próprio uma visão muito hedonista, às vezes a raiar o megalómano. É inegável que consegue um estatuto e uma obra raríssimos, mesmo que haja contemporâneos igualmente importantes, como o poeta mais moderno da época, Holderlin, que ficou esquecido durante um século.

O livro Goethe - O Eterno Amador é lançado hoje, às 19.00, no Goethe-Institut em Lisboa, numa sessão que conta com a presença do autor, Maria Filomena Molder e José Miranda Justo. Entrada livre.

Entrevista originalmente publicada a 25 de janeiro de 2018.