Filmes, sonhos e ouro de Wall Street
Com o filme A Queda de Wall Street, a produção americana volta a lidar com as atribulações da crise financeira, afinal refletindo uma tradição narrativa que marca momentos muito diversos da história de Hollywood
No filme A Queda de Wall Street (em exibição), Christian Bale interpreta a personagem verídica de Michael Burry, investidor e gestor de fundos que, por volta de 2003-2004, portanto com cerca de três anos de antecedência, previu a explosão dos créditos hipotecários no setor imobiliário dos EUA - como bem sabemos, esse abalo acabou por se transformar na crise financeira global que, direta ou indiretamente, tem afetado todos os cidadãos do planeta.
Burry surge como uma figura paradoxal e desconcertante, combinando a excelência analítica com o mais bizarro comportamento. Há nele uma evidente resistência ao diálogo com os seus pares, passando os dias encerrado num gabinete envidraçado, dir-se-ia um peixe num aquário que, além do mais, gosta de trabalhar (e pensar!) ao som do mais estridente heavy metal. Ao mesmo tempo, a sua perceção da iminência da catástrofe financeira, capaz de afetar tanto as instituições bancárias como o mais anónimo cidadão, é algo que resulta não de qualquer gosto pela observação da vida social, mas "apenas" da leitura obsessiva dos números, quadros e gráficos que surgem no ecrã do seu computador.
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Há outra maneira de dizer isto: os efeitos muito concretos das convulsões financeiras podem detetar-se nos dramas quotidianos das pessoas, mas a sua gestão (ou a sua derrocada) envolve um complexo universo virtual de informações, organizadas e controladas por um reduzido setor de especialistas. Era esse também o tema de fundo de outro filme recente - 99 Casas, de Ramin Bahrani -, neste caso a partir da atividade de um negociante do setor imobiliário que, na prática, vai executando as ordens de despejo dos que não conseguiram satisfazer as exigências dos empréstimos contraídos.
Wall Street, ganância & etc.
Dir-se-ia uma história de cruel "suspense" em que, subitamente, se rasgou a fronteira entre a frieza dos números e a derrocada da vida de muitas famílias. Mas não é uma tragédia abstrata. Numa entrevista à rádio pública americana (NPR), Adam McKay, realizador e coargumentista de A Queda de Wall Street, destacou, em particular, a "inteligência" do livro de Michael Lewis (ed. Lua de Papel) em que o seu filme se baseia: "Senti-me emocionalmente envolvido com as personagens e o seu mundo, em particular com o modo como tudo vinha das profundezas de Wall Street." McKay compreendeu a importância de evitar qualquer linguagem cifrada: "Digamos que, em última instância, percebi que as coisas não são assim tão difíceis e que os grandes bancos, as agências de rating e até algumas formas de jornalismo económico se esforçam imenso por complicar as coisas de modo que as pessoas não consigam reagir."
Quando olhamos para a história das atribulações do mundo financeiro no interior da história mais geral do cinema americano, não podemos deixar de reconhecer que o impacto de alguns filmes emblemáticos passa por essa capacidade de encenar tais atribulações a partir de vivências e personagens apelativas (por boas ou más razões). Lembremos o exemplo modelar de Wall Street (1987), de Oliver Stone: mais do que um relatório técnico dos delírios financeiros dos anos 1980, o filme retoma o modelo muito clássico das aventuras de iniciação, com o jovem e inexperiente corretor da bolsa (Charlie Sheen) a tentar seguir as pisadas de um mestre da especulação (Michael Douglas), apaixonado pelas miragens da "ganância".
A ganância, precisamente, era o tema e o título - Greed (1924) - de um clássico absoluto do período mudo, realizado pelo genial Eric von Stroheim a partir do romance McTeague (1899), de Frank Norris. Através de uma odisseia em parte vivida na paisagem agreste do Vale da Morte, o filme encena a utopia do sonho americano, desmontando-a através de uma saga em que o fascínio do ouro se confunde com a decomposição de todos os laços humanos.
Mesmo não esquecendo que os conflitos entre Stroheim e o estúdio produtor, Metro Goldwyn Mayer, implicaram a perda irremediável da versão original (com quase oito horas...), Greed ficou como uma assombrosa parábola universal que há muito transcendeu o seu contexto histórico. O certo é que há casos em que os mais variados registos dramáticos integram referências muito diretas aos grandes abalos económico-financeiros, em particular à Grande Depressão de 1929.
As Vinhas da Ira (1940), adaptação do romance de John Steinbeck por John Ford, será, por certo, um dos mais conhecidos. Mas vale a pena não esquecer outros exemplos menos óbvios como Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan, ou Lua de Papel (1973), de Peter Bogdanovich - no primeiro, a paixão do par central (Natalie Wood-Warren Beatty) evolui a par dos sinais cada vez mais cruéis da crise financeira; no segundo, um homem e a sua filha (Ryan O"Neal e Tatum O"Neal, pai e filha na vida real) tentam contrariar os efeitos da crise através de um "esquema" que envolve a venda ao domicílio de exemplares da Bíblia...
Uma questão de "engenheiros"
Ao contrário do que proclama uma visão banalmente tecnicista do cinema americano (como o cinema dos "efeitos especiais"), Hollywood tem refletido com grande rapidez, por certo com muitas diferenças e contradições internas, as perturbações sociais dos EUA - lembremos o caso admirável de Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, um elaborado retrato do escândalo Watergate surgido cerca de um ano e meio depois da resignação de Richard Nixon.
A crise de 2008 terá tido o seu primeiro grande retrato ficcionado em 2011, no filme O Dia Antes do Fim, de J.C. Chandor. Também aí, curiosamente, tal como em A Queda de Wall Street, o essencial acontecia em salas fechadas, com as personagens principais a contemplar, em crescente angústia, as informações que vão chegando através dos circuitos informáticos.
Também em 2011, Inside Job - A Verdade da Crise, de Charles Ferguson, arrebatou o Óscar de melhor documentário através de uma investigação didática de um mundo em que, decididamente, a responsabilização dos protagonistas nem sempre encontra uma via socialmente redentora. Uma das personalidades entrevistadas, Andrew Sheng (economista ligado ao Asia Global Institute), perguntava mesmo: "Porque é que um engenheiro financeiro deverá receber quatro a cem vezes mais que um verdadeiro engenheiro?" E rematava: "Um verdadeiro engenheiro constrói pontes. Um engenheiro financeiro constrói sonhos. E, podem crer, quando esses sonhos se transformam em pesadelos, são as outras pessoas a sofrer as consequências."
Do Céu Caiu uma Estrela (1946)
Não se poderá dizer que os filmes de Frank Capra (1897-1991) sejam sobre a especulação financeira. Longe disso. O certo é que os seus melodramas familiares envolvem componentes que questionam o lugar do dinheiro no "Sonho Americano". Este seu primeiro filme depois da Segunda Guerra Mundial é, afinal, um conto moral sobre um chefe de família exemplar e os imbróglios em que o dinheiro o envolve - é também uma das mais lendárias interpretações de James Stewart.
Os Ricos e os Pobres (1983)
Com realização de John Landis, eis um bom exemplo de uma comédia capaz de se manter fiel à grande tradição das fábulas políticas de Hollywood, em particular através da sarcástica observação das diferenças de poder social e financeiro dos seres humanos. Trata-se de saber como é que duas personagens totalmente estranhas entre si - um gestor financeiro (Dan Aykroyd) e um sem abrigo (Eddie Murphy) - se comportariam face ao dinheiro se os seus papéis fossem trocados...
Wall Street (1987)
Realizado por Oliver Stone, logo após a consagração de Platoon, é o mais lendário retrato cinematográfico dos bastidores de Wall Street, reflectindo o turbilhão da década de 80 e, em particular, o modo como algumas fortunas foram consolidadas através de processos, no mínimo, de duvidosa moral financeira. A personagem de Gordon Gekko, o especulador que proclama "a ganância é boa", tornou-se uma figura iconográfica do cinema de Hollywood - valeu um Óscar a Michael Douglas.
A Fogueira das Vaidades (1990)
Baseado no romance homónimo de Tom Wolfe, com Tom Hanks, Melanie Griffith e Bruce Willis, este é, por certo, o filme mais mal amado de Brian De Palma. A pretexto dos seus problemas de produção, foi mesmo trucidado por alguns sectores da imprensa americana antes de ter estreado... Através de uma teia de verdades e mentiras, jogos políticos e muitas manobras de bastidores, o mundo de Wall Street surge retratado como um teatro de muitas máscaras e traições.
O Dia Antes do Fim (2011)
Se já existe na produção americana um corpo de filmes sobre a crise financeira de 2008, este é, sem qualquer dúvida, um momento fundador. Através de um elenco admirável (Kevin Spacey, Paul Bettany, Jeremy Irons, Demi Moore, Stanley Tucci, etc.), assistimos a uma verdadeira tragédia interior, com os funcionários de um banco de investimentos a assistir, nos seus computadores, ao apocalipse de todo um sistema - foi a estreia na realização do brilhante J. C. Chandor.