11 novembro 2015 às 12h57

Ela viu Hamlet em Zaatari, campo de refugiados sírios

A Shakespeare's Globe Theatre fez deste campo da Jordânia um palco. A fotógrafa Sarah Lee esteve lá e conversou com o DN sobre o que viu

Mariana Pereira

"Ninguém estava a dizer que representar Hamlet vai resolver os problemas das pessoas, mas permite-lhes, por algumas horas, serem tratadas como qualquer outro público do mundo". As palavras saem em catadupa à fotógrafa Sarah Lee quando procura descrever aquele dia em Zaatari, um campo de refugiados no Norte da Jordânia onde vivem hoje 80 mil pessoas que fugiram à guerra civil síria - no seu quarto ano - e aos avanços do autoproclamado Estado Islâmico.

Aquele dia em que 200 refugiados sírios, cuja maioria não entende inglês, terá ouvido as seis palavras de Shakespeare "To be or not to be?" pela boca do nigeriano Ladi Emeruwa, o Hamlet da companhia britânica Shakespeare"s Globe Theatre, que tem levado a peça a percorrer o mundo.

A Síria foi o único país em que a Globe se viu impedida de entrar - por falta de permissão e segurança - na sua odisseia que começou a 23 de abril de 2014, quando Shakespeare faria 450 anos, e terminará a 23 de abril de 2016, 400 anos contados desde a morte do autor. Portugal foi palco de Hamlet em janeiro, no Centro Cultural de Belém, Lisboa, fazendo por isso parte dos 143 países já visitados pela companhia em 18 meses de estrada.

Sarah Lee, fotógrafa do jornal britânico The Guardian, encontrou na Jordânia a equipa que a essa hora já passara por países como o Burundi, Sudão ou Cambodja e que dali seguiria para Ramallah, na Palestina. Ver o que viu foi "um privilégio", ainda que vá repetindo o adjetivo "agridoce" ao longo da conversa com o DN. Já tinha estado em Calais, no abrigo de refugiados que todos os dias entram na Europa pelo Mediterrâneo, mas "nunca tinha estado assim num campo com o tamanho de uma cidade" e com tamanha "miséria humana e privação extrema".

[citacao:Hamlet por entre uma tempestade de areia]

Devido ao "grande controlo das ONG no terreno e das Nações Unidas", o tempo de permanência no campo era, à partida, muito curto. Isso traduzir-se-ia num único dia, das 8.30 às 16.30, em que, interrompida por uma tempestade de areia, a companhia de teatro britânica montou todo o cenário, representou Hamlet e voltou a arrumar todo o cenário. "As crianças", maioria das 200 pessoas que compunham o público naquela sala de Zaatari feita anfiteatro, "tinham uma concentração fantástica", conta Lee.

"Havia uma atmosfera de expectativa e entusiasmo, sabiam que o pai de Hamlet era um fantasma, perceberam a cena do envenenamento, seguiam a personagem da Ofélia, a cena da luta e das espadas", recorda. "Poder levar-lhes distração, performance, algo que durante algumas horas tirasse as pessoas de si mesmas, foi uma experiência eletrificante."

Entre o público estava uma companhia de teatro formada por refugiados em Zaatari. Um grupo formado por crianças, atores profissionais ou pessoas que, na Síria, cantavam em casamentos. No campo, já encenaram King Lear, também de Shakespeare. Saber disto, nota Lee, "é bom para quando as pessoas perguntam por que raio se leva Shakespeare [ali]. As pessoas dizem: "Eles precisam de comida, eles precisam de novas casas." Claro, mas também precisam de ser tratadas como pessoas. E as pessoas precisam de cultura, distração e beleza".

[citacao:Filmar tudo com um telefone]

Um rapaz do grupo de teatro filmou todo o Hamlet com o telemóvel. "Normalmente, o diretor de palco travaria aquilo, mas não o fez, e estou muito contente que não o tenha feito porque se via que aquilo significava tudo para ele. Claramente ele voltaria a ver aquilo, a estudá-lo", conta a fotógrafa, que testemunhou a pena da equipa do Globe Theatre por não ter conseguido contactar mais com os refugiados e por ter representado Hamlet num espaço fechado. "Eles preferiam ter representado na rua, mas o controlo era apertado."

Todavia, os atores ainda tocaram os seus instrumentos para as crianças - esta versão de Hamlet tem muita música, para atenuar as barreiras linguísticas - e falaram com elas. "Sentia-se quanto significou que as pessoas tivessem feito o esforço de irem vê-los." E, sobretudo, "eles pareciam felizes e gratos".

Ainda que, no final, se tratasse de Zaatari. E ainda que os atores do campo falassem da sua pena por não poderem receber Hamlet na sua terra, a Síria. "Definitivamente, agridoce", repete Sarah Lee.