Cabelos dos Beatles embaraçam como heterónimos em Pessoa
Estão em Lisboa dezenas de estudiosos para participar dos debates internacionais promovidos pela Casa Fernando Pessoa no IV Congresso Internacional.
Até ao princípio da noite de amanhã, o cadáver intelectual de Fernando Pessoa vai ser dissecado de todos os modos pelas quatro dezenas de especialistas que estão no auditório da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, para o IV Congresso Internacional sobre o poeta.
Cadáver? Duvida-se quando se ouvem as comunicações e o poeta é tratado como se estivesse sentado na primeira fila, faltando apenas pedir-lhe que tire as dúvidas sobre as suas várias pessoas. Porque após tantas elaborações investigatórias sobre a sua escrita em vida, a que os inéditos do baú acrescentaram trabalho para muitas gerações em todo o mundo - como provam os muitos estudiosos estrangeiros presentes -, Fernando Pessoa continua a ser um mistério intelectual e tema para diversas opiniões até numa mesma mesa de oradores e um único tema. Só se voltasse à vida é que o poeta esclareceria tantas dúvidas.
Que têm início logo à primeira sessão de ontem, com o debate sobre o Eu, por António Feijó e Richard Zenith. Concordam nuns pontos, discordam em muitos outros. Ultrapassadas as duas horas para apresentarem opiniões, o microfone pula da mão de um para a de outro, numa tentativa de ambos esclarecerem as pontas de um fio pessoano que nunca acaba. E repetir-se-á nas sessões seguintes.
Zenith, que há 10 anos trabalha numa aguardada biografia, foi sincero: "Continuo à procura de muitos elementos sobre ele." 15 minutos depois, Feijó diz das suas: "A questão do Eu está exausta e parece repetir-se." Quanto aos heterónimos, surpreende: "Perturbam o entendimento da dimensão de Pessoa!" Zenith sorri contrariado, irá refutar logo que possa, mas Feijó decide animar os espetadores: "Os heterónimos são um embaraço. É como o cabelo dos Beatles a meter-se no debate sobre a música."
Segue-se outro tema complexo: Pessoa político, com Manuela Parreira da Silva, Madalena Lobo Antunes e Anna Klobucka. Apesar de ser anunciado como tema único, a implosão dá-se logo com a primeira oradora, que trata do Pessoa antipatriota e germanófilo durante os tempos da Grande Guerra e coloca a sua opinião - um opúsculo que nunca publicará - na boca do seu heterónimo António Mora. Para aliviar a tensão, declama algumas quadras bem humoradas que Pessoa escreveu sobre o conflito.
A segunda oradora não se fica atrás no frisson e lê textos do poeta que, ao comparar com parágrafos do II volume de O Capital, soam tão idênticos às proclamações de Karl Marx que poucos duvidam da exigência de um lugar na heteronímia para um Pessoa marxista.
A terceira oradora dá o choque final que eletriza a casa cheia e retira o poeta do armário ao escrutinar a posição perante a polémica Sodoma - anos 20 - e o entendimento sobre a palavra "invertidos" no posicionamento perante a homossexualidade que as canções de António Botto lhe exigiram então.
No auditório, a plateia manteve-se atenta. Toma muitas notas e atualiza o Facebook e o Twiter.