Super Natural - Um filme em forma de tudo ou nada.
Um filme que ouve e fala. Melhor, que fala e sabe ouvir. O cinema interativo de Jorge Jácome é algo em construção, mas já com uma energia e um corpo palpável imagético invulgar. Por isso, é fácil ficar atraído por estas imagens que nasceram a partir de um trabalho coletivo com a associação madeirense Dançando com a Diferença, que costuma integrar pessoas com deficiência no seu processo de criação de objetos artísticos, e o Teatro Praga, a companhia teatral que marcou o teatro português nos últimos anos.
Numa altura em que cada vez menos bilhetes se vendem nas salas nacionais para filmes de autor, não deixa de ser curioso essa fuga para a frente da distribuidora No Comboio, projeto de Ana Isabel Stringberg, sem medos (ou com vontade de experimentar) de apostar comercialmente num filme assumidamente experimental, mesmo com postas de ficção e documentário. Aliás, é precisamente essa polivalência de registos que pauta o charme desta proposta. A questão acaba por ser: será que há uma apetência do experimental para um novo público que quer arriscar mais? Os números positivos de entradas num IndieLisboa 2023 muito radical e o sucesso de A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos, são pistas que podem dar esperança. Todavia, é mesmo de saudar a estreia desta obra que foi calorosamente recebida no Forum da Berlinale o ano passado. Pois, "do ano passado" - este atraso não é o ideal para rentabilizar o hype que esta obra já chegou a ter, nomeadamente com mudança de data de estreia.
Com argumento do realizador e dos Praga José Maria Viera Mendes e André Teodósio, Super Natural parece andar à volta de uma ideia de primórdios do aparecimento da vida humana e do que pode acontecer ao futuro do planeta. Uma aventura que vem da água, das plantas e do oxigénio e de onde surgem seres que se vão multiplicando. Uma super natureza, tão natural como complexa. E a história que não é narrativa funde a sonoridade e os sons com as matérias do sensorial. Pelo meio, ficam esboços de conceitos como a inclusão e a diferença por entre propostas de poesia, fisico-quântica, engenharia ou biofísica. Tudo isto sempre através das mais variadas fontes de imagem, a maioria delas numa aproximação feliz a uma Madeira que não estamos habituados a ver. O próprio Jácome, num texto para a folha de sala da sessão do seu filme na Cinemateca, falou nessa relação com o espaço de uma ilha: "uma convivência entre espécies endógenas e a presença humana, migrações várias e transeuntes que a atravessaram e atravessam, as imagens foram-se construindo a partir do cruzamento entre uma paisagem e a sua ocupação pelos corpos dos intérpretes da companhia Dançando com a Diferença, como se folheássemos um álbum de retratos. Recorrendo muitas vezes à improvisação dos intérpretes em locais tão diversos como uma piscina natural, um jacuzzi, um jardim, um viveiro de orquídeas, a cama de suas casas ou um teleférico". Curiosamente, essa fusão "natural" era já tacteada em Flores (2017), onde a ilha era nos Açores, Flores, nem de propósito.
E se a génese disto tudo era o palco, a matéria e a forma do filme são justamente anti-teatrais mas contendo uma abissal vontade performativa. O tal "era uma vez" do pensamento da criação expande-se numa noção aberta de encontrar coordenadas visuais, sejam elas o videoclipe, a colagem, a animação, o videojogo. Jácome não vai em amarras: experimenta tudo, em especial esse contraste entre as confissões dos participantes e a luxúria autóctone madeirense. Às tantas, esse insondável diálogo com o mistério da criação e dos seus enigmas produzem uma sensação de perdição que faz parte da boleia. Uma boleia que nunca nos dá aquilo que pensávamos que íamos ter, é essa a rasteira traquina dos seus criadores, como aqueles achados artísticos que são tudo e ao mesmo tempo nada.
No copo meio vazio do juízo há quem possa protestar com razão haver sinais de uma certa "fofura" na própria fórmula de filme experimental desaustinado. Conceda-se que estamos todos fartos do cinema "fofinho" de artista, mas no copo meio cheio também é preciso elogiar que no risco de tanta mistura e desvio há risco verdadeiro, às vezes até duramente selvagem, sobretudo quando surge uma proposta de insolência adolescente: a possibilidade do cinema poder ser um feito invisível.
Jorge Jácome, com um visível humor dos Praga e de todo o seu mundo, parece querer formar um novo sistema de cinema, repleto de imagens novas, de pecados inéditos e profecias estéticas hereges, muito década 20 deste século, muito "new age" de geek com filosofia ready-made. Nesse ponto, esta é a típica obra para exasperar o cinéfilo que está preso aos clássicos e que acha que "está velho" para isto.
No meio de tanto - e aqui a forma pede quantidade - há coisas que saem ao lado, elementos que parecem trabalho de casa de um curso de multimeios feito com um pc do irmão mais velho. Nada que anule o efeito de um National Geographic cheio de ácidos.
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