o Paulo pendura uma bandeira, o David leva o Vasquinho a tocar o sino
Sexta-feira, 8 de Julho
Navegamos da Terceira a São Jorge, para uma semana nas fajãs. O mar cavou-se um tanto, mas o Santorini é grande, e há algo nos modos da tripulação - metade dela grega - que nos traz segurança.
A Praia envolve-se numa névoa, há sol sobre o Ilhéu, névoa de novo em Angra. As serras estão cobertas, e nem me ocorre conferir os Fradinhos.
Passageiros vêm filmes em iPads, os restantes olham o telemóvel. Uma rapariga dá pela estante de book crossing e faz uma festa. Tira um livro colorido, leva-o para a mesa e pega no telefone. Liga a um e a outro, liga até não ter a quem ligar. Quando abre o livro, adormece.
Consigo, enfim, concentrar-me no Graham Greene. Mas logo uns franceses fazem barulho, e saio a fumar no convés. Manchas de luz intervalam o nevoeiro, e as gaivotas seguem-nos.
Penso nos descobridores, nos baleeiros. Mas os cetáceos não aparecem, e volto a entrar. Uma tripulante quer uma assinatura. Diz que é florentina e que, promovida aos escritórios, teve saudades do mar.
Cometemos o erro dos amadores - levar o estômago vazio -, e as ondas acentuam-se. Subimos ao restaurante e comemos como loucos, um polvo inteiro a cada. Recuperamos o equilíbrio.
Volto a sair, e então aí está ela: a ilha comprida. O Topo, as primeiras fajãs, feixes de luz sobre explosões de verde. O sol já se vai pondo, além-Rosais, mas à nossa esquerda ainda se desenha o Pico.
Daqui a pouco aportaremos às Velas e, porém, este canal podia não acabar. Parece-me impossível, às vezes, não rebentar de amor por estas ilhas - pelo que nelas resta de espaço e possibilidade.
Confirmá-lo-emos em breve, descida a fajã. Ao chegar, paramos num bar, a brindar às férias, e na bomba de gasolina. A proprietária atesta e, notando-nos forasteiros, pergunta onde ficaremos.
- Na Fajã de São João.
- Ui.
Impressiona-se com a lonjura, o que me traz à memória aquele coast-to-coast de há anos: um velho no Kentucky, o dono de um restaurante no Arizona - todos cobiçando a minha matrícula de NY:
- You"re a long way from home, son...
Depois chegamos à fajã. Soam cagarros, o mar marulha. Saímos junto à ermida centenária, a aspirar a ressalga. Ao nosso lado, um azulejo recita:
As alminhas que aqui vedes
de labaredas vestidas
quem sabe se representam
as vossas almas queridas
Trocamos um olhar. Vamos ser felizes aqui.
Sábado, 9 de Julho
Temos um dia para nós, antes de chegarem os continentais, e visitamos os anfitriões - o Paulo que conheci miúdo, a Paula que foi minha colega no liceu.
Estão a depenar galinhas, frente ao mar, sentados sobre baldes virados. Mergulham as galinhas em água a ferver e depenam-nas. Conversam, ali a depenar, e há um romantismo nisso.
- A ver se vamos aos caranguejos - diz um.
Há anos que defendem a fajã. Quando a taberna fechou, ocuparam-se dela até vir alternativa. Agora pensam num alojamento - não para enriquecer, mas para chamar visitantes.
Tocam na filarmónica.
Tornamos a agradecer-lhes, fazemo-nos amigos do cão Barbicha e saímos pela ilha. Comemos um bife no Álvaro, descemos ao supermercado e voltamos a casa. Vamos da Saramagueira à Fajã d'Além, forçando o Chrysler, e estacionamos numa adega onde uns velhotes nos convidam a provar o vinho.
Estão ébrios e divertidos e, enquanto bebemos, diagnosticam-me um pneu a meio. Vão buscar uma bomba velha e apresso-me a agarrar nela. Mas, enquanto me empenho sobretudo em que o pneu não esvazie de vez, liga-me a S., com as últimas logísticas, e eles conseguem esvaziá-lo.
Rimo-nos e vamos sentar-nos na taberna, onde a Mónica e o David nos servem alheiras, linguiças, morcelas. É tudo de produção caseira - feito pela D. Rosa, guardiã de tradições -, e bebemos vinho de jarro como Moët & Chandon.
Os cagarros alvoroçam-se, o mar persiste marulhando. Jogamos ao prego e a Catarina paga a rodada. Depois vai descansar e eu sigo com o Paulo para uma chamarrita.
Domingo, 10 de Julho
Apanhamos os continentais e corremos a ver o jogo. O televisor é antigo, 4:3, mas estamos juntos e, mesmo lesionado Ronaldo, mantemos a esperança.
Findos os 90", acaba-se-nos o rosé e subimos à taberna. A Catarina e a S. viram martinis. Mas dali a pouco Éder ousa chutar, fechando a trilogia de Camões e Pessoa, e a festa inunda a fajã.
Somos uma dúzia, mas parecemos mais. Um vizinho lança foguetes. O Paulo pendura uma bandeira, o David leva o Vasquinho a tocar o sino à ermida.
Ligo ao meu pai. Liga-me o Américo, contando da festa dos Dois Caminhos. Tocamos viola, e jogamos ao prego, e bebemos muito ainda, até nos sentarmos no jardim do Paulo, a tomar canja e bicarbonato.
Connosco vêm as palavras daquele senhor grande, sentado placidamente na taberna, a olhar a TV:
- O meu pai não viu isto. O meu avô não viu isto.